segunda-feira, 14 de maio de 2012

MEDO & TERROR

-- Mãe!
-- O que foi, meu filho?
-- Eu tô com medo.
-- Medo? Não tem por que ter medo.
-- Mas é que eles estão chegando.
-- Filho, eles não podem nos fazer mal algum.
-- Mas mãe, eles são tão medonhos!
-- Eu sei, filho, mas apesar da aparência horrorosa, eles são inofensivos.
-- Se ao menos papai estivesse aqui.
-- Seu pai foi combater nossos inimigos; esses sim devem nos causar medo.
-- Quando eu crescer vou ser tão corajoso quanto meu pai?
-- Claro que sim; está em seu sangue.
-- Veja, mãe, eles chegaram.
A horda horrenda espalhou-se pela planície tomada pela imundice depositada sobre o que já foi um verdejante gramado. Silhuetas esquálidas perambulavam por entre grupos que haviam estacionado em um ou outro ponto da planície. Os andrajos que lhes cobriam os carcomidos corpos mal serviam para impedir a visão cadavérica comum a todos que se perfilavam ante os montes de resíduos orgânicos e inorgânicos; deste pútrido recanto era que eles conseguiam sustentar a débil esperança de sobreviverem por mais um dia.
Ainda temeroso, o jovem amo deixou-se ficar escoltado pela amurada fortificada do castelo. Olhos atentos, ele percorria toda extensão do terrível campo; sua mente delirava na tentativa de entender a existência daquelas criaturas tão grotescas. Em momento algum era capaz de atinar para o fato de pertencerem à mesma espécie.
Habituado ao aroma inebriante das flores e frutos dispersos pelo rico pomar que cercava seu habitat, o pequeno não era capaz de imaginar o odor nauseabundo que penetrava por aquelas narinas ressequidas e carcomidas pela putrefação. Alias, as próprias narinas exalavam o odor da morte que grassava aqueles arremedos de seres vivos.
-- Mãe! O ar partiu de seu pulmão como jamais fora capaz de fazê-lo.
-- Filho! Apreensiva a mãe acorreu ao brado do rebento.
Olhos esbugalhados, o filho mirava uma débil sombra que insistia em permanecer imóvel como se fixasse seu olhar nos contornos da construção.
-- Eles podem nos ver?
-- Acalme-se, mesmo que possam, não podem nos ameaçar.
-- Mas o que os impede?
-- O medo!
-- Igual ao meu?
-- Oh, não! Seu medo é infundado, reação típica de um jovem valente. O medo que eles sentem é como uma pressão mortiça que os sufoca impedindo-os de agir com liberdade. Eles não estão vivos, não mais.
-- São mortos vivos?
-- Quase isso.
-- Mas é por isso que eu os temo!
-- Filho, eles não podem nos fazer mal algum!
A sentença materna não admitia replica, mas o jovem coração cismava em se questionar até que ponto realmente poderiam considerar-se intangíveis por aqueles fantasmas rotos. A figura que despertara sua atenção ainda permanecia parada no mesmo ponto e na mesma posição; olhando-a melhor, ele deixou um suspiro de surpresa ganhar-lhe os lábios, a silhueta pertencia a uma menina...
Os archotes externos foram incendiados, a guarda real postou-se nas amuradas, o capitão do castelo lançou-lhe um olhar de reprovação como se a inquiri-lo a deixar seu posto de observação, mas nada falou, ele não tinha autoridade para questionar as atitudes de seu amo.
Repentinamente uma gritaria ensurdecedora irrompeu em meio aos esqueléticos seres; a celeuma se completou com a agitação desordenada de muitos que corriam de um lado para outro gritando cada vez mais alto. Sem entender o que se passava, mas querendo saber como tudo terminaria, o jovem não arredou os pés de seu esconderijo.
Foi nesse nicho seguro que ele observou a guarda redobrar os cuidados. Será que eles corriam risco de serem atacados pela horda de esquálidos? Um olhar mais profundo para o semblante do capitão e suas preocupações se desvaneceram, o homem mostrava-se tão sereno como quando exercitava seus homens para o exercício de vigia.
A cena desconexa continuava a se desenrolar junto aos andrajosos seres. A surpresa deu lugar ao espanto e este ao terror quando o jovem percebeu aquilo que se desenrolava nos montes; uma verdadeira carnificina teve origem sem nenhuma advertência. Corpos eram mutilados e imediatamente divididos entre aqueles que não participavam das lutas. Eles estavam comendo aqueles que tombavam.
-- São animais! Esbravejou o capitão. Seres racionais não se alimentam de seus semelhantes.
As pernas do jovem tontearam, suas vistas se escureceram e seu estomago entrou em um vórtice sem fim. Quando se deu por si, estava deitado sobre seu leito com a mãe a olhá-lo entre enternecida e severa.
-- Mãe. Sua voz ainda era débil.
-- O que pensa que estava fazendo?
-- Nada. Eu só queria ver o que eles faziam.
-- Satisfeito! Agora terei que passar a noite ao seu lado.
-- Não, eu estou bem, é sério!
-- Está agora, mas quando...
-- Eu não tenho medo de nada em meu quarto.
-- Está bem, mas deixarei a ama vigiando no trocador.
-- Mãe!
-- Nem um resmungo a mais, mocinho. Quando seu pai voltar ele vai ter uma conversa muito séria com o senhor.
A solidão! Depois de uma experiência tão viva, ele não esperava ter que enfrentá-la tão cedo, mas se seu pai estivesse presente, certamente diria que era melhor enfrentar o perigo de uma vez do que adiar o confronto. Olhos cerrados, tentou conciliar o sono, mas ao fechar as portas para o mundo real percebeu que não tinha a menor vontade de entregar-se aos braços de morfeu.
Mesmo sem sentir-se sonolento, manteve os olhos cerrados. Sentia ser mais fácil enfrentar a solidão se não precisasse mirá-la a todo instante. Ao fechar os olhos, sua mente mergulhava em mundo próprio onde nada o assustava, ali ele podia ter a companhia de quem bem entendesse... mas não naquela noite.
A companhia que surgiu diante de seus olhos eram as mesmas que havia observado na planície. Os corpos cadavéricos, os olhares esbugalhados, as peles pendentes quase não sustentando carne alguma, os movimentos incertos, mas contínuos, o fedor... sim pela primeira vez ele era capaz de senti-lo... como eles suportavam aquele cheiro desagradável a invadir-lhes as narinas? Antes que voltasse a vomitar, percebeu que o fedor provinha dos próprios seres, de seus corpos mutilados e corroídos pela miséria.
Tentou gritar, tentou abrir os olhos, mas, desesperado, soube que havia penetrado em um mundo que não lhe pertencia, um mundo sobre o qual não tinha o menor controle. Agarrou-se o mais que pode ao leito, mas os passos e as vozes ficavam cada vez mais próximos, logo ele estaria frente a frente com o pior de seus pesadelos.
Segurou o reposteiro, agarrou o apoio da cabeça e colocou-se retraído como se ainda estivesse no útero materno. De repente sentiu o toque... não foi rude como ele havia imaginado, pelo contrário foi suave, quase como se o vento estivesse tocando sua fronte. O odor também já não incomodava tanto. Demorou uma eternidade para criar coragem e descerrar os olhos, mas sabia que não poderia, nem adiantaria nada, continuar com eles fechados. Assim que os abriu, foi colhido por uma visão que o deixou sem reação.
-- Não precisa ter medo, não queremos lhe fazer mal.
-- Quem... quem... quem... é... quem é...
-- Eu sou Mayra. Estive olhando para você hoje à tarde.
-- Não! Você não conseguiria entrar em minha casa, os guardas não permitiriam.
-- Eu não estou em sua casa.
Decididamente ele não controlava nenhum elemento desse mundo estranho. Abrindo os olhos por completo, divisou os montes fétidos que se espalhavam pela planície. Assim como não fazia idéia de como chegara ao seu quarto, também não sabia como tinha chegado à planície.
-- Como... quem... quando...
-- Você veio por que quis.
-- Mentira! Eu não quero ficar neste lugar medonho e fedorento!
-- E acredita que nós queremos?
A pergunta ficou ecoando em sua mente mesmo quando teve certeza de estar deitado sobre seu leito aquecido e limpo. Ainda não sentia coragem de abrir os olhos, mas sabia que estava em seu quarto, seguro de todo mal que reinava na planície.
No entanto não se sentia tranqüilo. O olhar dorido da menina o acompanhava por todos os lugares, sua voz macia ecoava em seus ouvidos e seu toque suave ainda estava sensível em sua pele. Sem conseguir libertar-se daquele pesadelo vivo, sentiu que sua mente rendia-se as raias da loucura. A experiência foi demais para ele... aquele que haveria de reinar após seu pai, caía perante a dor mais profana do mundo... sua mente ruiu...




Tudo que está relatado acima é apenas efeito do medo; medo originado nos preconceitos arraigados em nossas almas. Onde começa o terror?

O terror está em saber que esta cena acontece cotidianamente em nossas cidades; não necessariamente de castelos, mas de apartamentos ou casas, ou mesmo de coletivos ou veículos particulares, podemos observar a multidão de esquálidos que vagam pelas ruas sem que uma mão lhes seja estendida. Até quando permitiremos que a miséria seja o muro que nos separa de nossa verdadeira essência? Até quando viveremos a hipocrisia de uma humanidade injusta e arrogante?

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