terça-feira, 14 de agosto de 2012

MAGAREFE


O ambiente era o que se pode chamar de não recomendável. Os dois homens seguiam entre transeuntes suspeitos e desconfiados. Enquanto o mais velho parecia estar caminhando entre amigos, o mais novo dava sinais de estar sendo acossado por demônios zombeteiros que o conduziam para a boca do próprio inferno.

As ruas encontravam-se entupidas de prostitutas mal vestidas, malandros cheirando a uma mistura de perfume barato e álcool, punguistas e outras tantas personagens que só encontravam acolhida no seio sorumbático dos becos e ruelas dominadas por uma asfixiante névoa originada de chaminés que não descasavam jamais.

-- Tem certeza de que estamos agindo certo? Perguntou o amedrontado jovem.

-- Não somos servos do Senhor? Onde mais podemos encontrar almas necessitando de salvação?

-- Mas esse antro é tão perigoso.

-- Ainda tem muito que aprender meu jovem noviço.

O incipiente diálogo foi interrompido pela visão do destino que buscavam. A entrada da taverna era ainda mais repelente do que o caminho percorrido, mas o velho homem não dava importância a nenhum dos detalhes que compunham a miserável paisagem. Sua mente tinha um único propósito e quanto antes ele cumprisse sua tarefa, melhor.

-- Padre! Gritou um homem robusto e repleto de sinais tortuosos em seu corpo. Veio tentar converter mais alguma alma perdida?

-- O de sempre, Arnaldo.

Sem dar maior atenção ao barman, o padre tomou lugar numa das mesas mais afastadas do local. A presença de seu aprendiz era um ônus que ele desejava não ter que carregar, mas não havendo opção...

-- Peregrinando pelo purgatório?

-- Tenho assuntos a tratar por aqui.

-- Mais almas que clamam por misericórdia?

-- Esta noite não. Preciso falar com o gerente.

-- Ah, o gerente...

-- Você me conhece, sabe que eu não pediria um encontro com ele caso não fosse extremamente necessário.

-- Espere aqui enquanto vou ver o que consigo.

A presença habitual do padre serviu para que a normalidade do local seguisse seu curso, nem mesmo a companhia de um novato despertou o interesse dos demais freqüentadores. Por meia hora eles tiveram que esperar.

-- O gerente vai recebê-lo, agora.

-- Obrigado.

-- Apenas o senhor.

-- Certo. Pode cuidar de meu amigo enquanto eu vou ter com o gerente?

-- Tudo bem. Algum tratamento especial?

-- Não, apenas fique de olho nele.

Lentamente o padre atravessou o imenso salão que abrigava a taverna. Sem que nenhum outro presente se importasse com seu caminhar, ele chegou até a porta que conduzia ao interior da parte reservada. Um profundo suspiro escapou-lhe ao transpor a barreira; não era a primeira vez que se encontrava com o gerente, mas sempre que era necessário tal encontro, sentia seu peito premer, muito mais agora que o motivo o deixava mais incomodado.

-- Entre, salvador dos pecadores. A voz gutural de seu interlocutor não lhe causava mais o desconforto das primeiras vezes, mas mesmo assim ele sentia algo de sinistro toda vez que eles se falavam.

-- Desculpe-me pela quebra de sua rotina, mas o assunto é urgente.

-- Vai querer salvar minha alma?

-- Embora mesmo você seja merecedor de misericórdia, não é este o motivo de minha presença aqui.

-- Certo, em que posso lhe ajudar?

-- Preciso encontrar um vampiro.

-- O que... o gerente mantinha-se entretido com algumas raspas de fumo, ao ouvir o pedido do padre ele teve que cuspir o conteúdo de sua boca. Certos assuntos devem ser tratados com mais diplomacia.

-- Sinto muito, mas não tenho tempo para circunlóquios sem sentido.

-- Não está querendo virar um caçador desses miseráveis, está?

-- Não. É certo que a existência desses seres nos causa indignação, mas o motivo de  minha procura é outro.

-- Bem, considerando seu status e a instituição a qual representa, devo salientar que será bem difícil atender sua solicitação.

-- Mesmo assim devo insistir.

-- Verei o que posso fazer.

-- Por favor, o caso é urgente.

Assim como haviam chegado, o padre e seu acompanhante partiram. Sem poder compartilhar sua carga com ninguém, ele se martirizava por não poder resolver tudo a seu modo. A palavra empenhada sempre foi uma questão de honra, o que não dizer em se tratando da pessoa envolvida? Ele iria esperar até a noite seguinte, caso não tivesse resposta, partiria para o local onde imaginava que os vampiros habitavam.

Único conforto em meio a tempestade que vivia, o jardim interno do imenso mosteiro mantinha-o entretido durante a tarde. O sol castigava, mas ele não se importava, sua atenção estava concentrada em atender às necessidades das pequenas plantas. A concentração só foi quebrada quando uma sombra interpôs-se entre ele e o sol.

-- Poderia afastar-se um pouco. Solicitou imaginando tratar-se de algum dos irmãos que viera até o jardim.

-- Estou precisando me confessar.

-- O horário das confissões está fixado na entrada do mosteiro.

-- O senhor desejará ouvir minha confissão.

A presença de um estranho nas dependências do mosteiro já seria um fato inusitado, considerando a hora em que se encontrava e a insistência do mesmo em querer ser ouvido em confissão levaram o padre a abandonar sua tarefa e mirar o semblante juvenil do estranho.

-- Uma confissão?

-- Um certo gerente me garantiu que o senhor é um dos melhores neste mister.

-- Venha, creio que posso abrir uma exceção.

Em silêncio ambos caminharam em direção à pequena capela existente na extremidade do jardim. O suor escorria pelo rosto do padre, mas não era causado pelo sol escaldante, uma vez que seu corpo era atingido por espasmos enquanto o frio o dominava.

-- Temos que ter cuidado.

-- Não se preocupe, posso pressentir a chegada de qualquer um que se aproxime.

-- Muito bem. Vamos ao confessionário.

Posições assumidas, o padre executou os paramentos habituais, descerrou a portinhola que lhe concedia vislumbrar a silhueta do estranho.

-- Intrigante. Foi o comentário lacônico do homem.

-- Constrangedor, para mim.

-- Se é, por que me procurou?

-- Um amigo solicitou minha intervenção em uma caso de extrema urgência e gravidade.

-- Poderia ter declinado da solicitação.

-- Não, não neste caso.

-- Muito bem, que assunto tão importante é esse?

-- Conhece o príncipe Del Fochio?

-- Aquele verme!

-- Sua filha foi acometida por um mal letal.

-- A pequena princesa do Lácio?

-- Eu tentei enfiar em sua cabeça dura que não seria recomendável a sugestão que ele havia me feito, mas ele está cego.

-- Fosse pai, compreenderia seu amigo.

-- Não sou pai, mas posso compreendê-lo. Mesmo não concordando com sua opção.

-- Então o abominável príncipe está oferecendo sua doce filha em sacrifício!

-- Caso aceite, seja delicado com ela.

-- Eu a conheço muito bem. Não que seja uma mulher a qual eu procuraria para satisfazer meus desejos mais pecaminosos, mas ela é um encanto.

-- Quanto ao pagamento por seus préstimos...

-- Pagamento!

-- Sim. O príncipe me autorizou a oferecer-lhe uma trégua em suas ações.

-- Nós nunca selaremos a paz com aquela aberração!

-- Mas ele está...

-- Deixe que eu trato diretamente com ele o preço a ser cobrado.

-- Quer dizer que aceita?

-- Não perderia esta oportunidade por nada deste ou de qualquer outro mundo.

Enquanto o padre entregava-se a penitente oração, o jovem vampiro exultava em seu vôo até o reduto que compartilhava com os outros iguais. Em seu âmago vibrava uma energia até então desconhecida. O maldito que os caçava implacavelmente solicitara auxílio; não um auxílio qualquer, mas ele estava disposto a entregar a filha para aqueles a quem ele desprezava.

O sorriso que estava estampado em seu semblante despertou a curiosidade dos outros, mas ele não permitiu questionamentos. Foi até os aposentos que ocupava, esmerou-se na preparação de seu visual e voltou a deixar o reduto dos vampiros.

A situação no palácio do príncipe era desoladora. A mãe permanecia estática ao lado do leito da filha, o príncipe havia se refugiado em sua biblioteca entregando-se ao ilusório conforto da bebida.

-- Vermelho como o nosso, mas a este falta a docilidade do buquê que apenas o sangue possui.

A manifestação inesperada fez o príncipe revirar-se sobre a cadeira; estivesse sóbrio, ele teria sofrido um tombo ruidoso, mas em seu estado o máximo que ocorreu foi um deslizar quase bizarro.

-- Você! Vociferou ao identificar o interlocutor.

-- Sem agressividade, afinal você solicitou meus préstimos.

-- De todos os vermes da Terra, por que tinha que ser você?

-- Destino.

-- Não fosse a dor que me consome, eu mesmo o mandaria para o inferno.

-- Se minha presença é tão odiosa, vamos concluir nossos negócios rapidamente.

-- Certo. Acompanhe-me.

A vingança é um cálice que se deve sorver lentamente.

O sorriso sarcástico do jovem vampiro contrastava com a silhueta dorida do príncipe. Fosse outro a estar dependendo de seu auxílio, o jovem não estaria se portando de modo tão cruel, mas aquele homem havia praticado as mais brutais ações contra os seres das trevas.

-- Por favor, espere um pouco. Minha esposa não foi informada sobre o acordo.

Por ele, o jovem vampiro, esperaria toda eternidade, mas a filha do príncipe não tinha tanto tempo assim. Após alguns minutos onde as alterações das vozes chegavam indistintas aos seus ouvidos, ele contemplou a mulher sair tresloucada do quarto enquanto o príncipe o convidava à alcova.

-- Faça!

-- Sabe que a perderá de uma maneira ou de outra.

-- Não importa. Melhor saber que a perdemos mantendo-a neste mundo do que sabendo que ela se foi.

-- Ela não poderá conviver com vocês.

-- Eu sei.

-- E quanto a sua selvageria sem limites? Continuará a nos caçar como se fossemos verdadeiros demônios?

-- Não. Enquanto eu viver vocês estarão livres para ir e vir em minhas terras.

-- Perfeito. Sem dar maior atenção ao príncipe, o jovem preparou-se para a consumação do ato.

-- Ainda não acertamos os detalhes do pagamento.

-- Pagamento? O que mais poderia ofertar de tão valioso em troca de uma missão tão saborosa?

Novamente o escárnio. O arrogante príncipe foi obrigado a engolir sua fúria e assistir enquanto seu odioso inimigo lhe tirava seu bem mais valioso.

Em sua tarefa permeada de prazer e dor, o jovem vampiro não se apercebeu da manobra infame do príncipe. Ainda deitado sobre o corpo inerte da moça, ele sentiu quando a lança o atingiu no peito.

-- Maldito! Acreditou mesmo que eu entregaria minha filha à escória?

Nem um único movimento de reação foi observado. Como se a lança nem estivesse atravessada em seu corpo, o jovem concluiu sua ação e somente então voltou sua atenção ao príncipe.

-- Eu deveria esperar atitude vil de sua pessoa, mas tenho como reparar minha distração.

Ao perceber que o jovem retirava, tranquilamente, a lança de seu corpo, o príncipe recuou assustado. O iminente golpe que ceifaria sua vida o fez alienar-se de tudo o mais. Para surpresa ainda maior, o jovem pareceu voltar a ignorá-lo. Ao retirar toda lança do corpo, atirou-a a um canto, debruçou-se sobre a enferma tomando-a em seus braços.

-- O que vai fazer?

-- Eu poderia por fim a sua infame existência, mas isto seria lhe conceder o benefício do esquecimento.

-- O que pretende?

-- Toda vez que se lançar em uma caçada contra os meus, irá se perguntar: “será que minha filha está entre aqueles que estou perseguindo”?

-- Não!

-- Adeus, príncipe!

Assim que a sombra volátil do vampiro se desfez, o príncipe recuperou sua capacidade de raciocinar, mas então era tarde demais para qualquer reação. Apesar de toda sua prepotência, o inimigo levara a melhor, ele havia perdido a filha e ao retornar para seu quarto ficaria ainda mais estarrecido; inconformada com a solução encontrada pelo esposo, a princesa colocara um fim a sua existência.

2 comentários:

Renan Caíque disse...

Excelente! Gostei muito do teu blog...

Unknown disse...

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