Sem
perspectivas eu erro por uma Terra devastada. Os anos de glória da raça humana
se foram, agora as trevas e o caos dominam aquele que já foi o berço de uma
espécie arrogante e irresponsável. Eu nem deveria estar mais por aqui, mas
minha maldição se mostrou mais ferrenha do que a desgraça que se abateu sobre
os outros que eram iguais a mim.
Antes do último
troar da derrocada, fomos ludibriados por nossa vã esperança de podermos
reverter a maldição que nos perseguia. Um remédio miraculoso prometia nos livrar
do mal que consumia nossas almas, mas tudo não passou de uma quimera, ao menos
para aqueles que se tornaram vítimas de nossa própria... esperança...
Talvez seja por
este motivo que eu ainda erro por este mundo caótico; eu jamais tive esperança.
Não de um remédio produzido por mãos e mentes conectadas com o mundo material.
Nossa maldição teve origem em um plano muito distante deste que ocupo. Eu sabia
que o mal que nos devorava não poderia ser debelado por uma ação grosseira.
Enquanto
assistia a todos serem consumidos pelo efeito do remédio, eu enfraquecia,
perdia-me em miragens fantasmagóricas, debatia-me em dores impossíveis de serem
suportadas por outro ser vivente, mas no fim eu sobrevivi.
Já não preciso
mais me ocultar nas sombras. Os humanos que sobreviveram estão tão absorvidos
por sua própria danação que já não represento mais nenhuma ameaça. É certo que
também não me alimento mais de suas energias; nisso o remédio ajudou. Depois da
crise inicial, eu passei a me sentir quase humano. Os alimentos deixaram de ser
insossos; a água refrescava e abrandava minha sede; a luz solar não em causava
mais fustigação; eu comecei a acreditar que havia conseguido.
Tolo! Eu também
me iludia!
Os anos
seguintes me mostraram o quanto eu estava enganado. Misturado ao bando de seres
que vagavam fugindo do caos que se instalou após a deflagração do último
conflito humano, fui confrontado com minha nova situação. Em muitas ocasiões
tive que me defender e sempre que o fazia, o resultado era sombrio. Corpos
mutilados, pessoas feridas de morte, sangue fluindo por ferimentos
indescritíveis, e eu sempre me sentindo mais forte.
Por este motivo
me tornei um nômade solitário. Sem ter companhia de outros, não tinha como ser
agente de mais destruição. Tudo se passou perfeitamente bem nos primeiros cinco
anos, mas então a sina de predador prevaleceu. Não por minha vontade, mas pela
insensatez dos humanos.
Há dias vagando
sem destino por uma área com árvores carbonizadas, encontrei uma corrente de
água; fato muito raro neste mundo desprovido de recursos naturais. Aproveitei o
ermo da paisagem para permanecer inativo por alguns dias, um erro que não
justifica a idiotice daqueles que me encontraram, mas que me causa incômodos
anímico sucessivos.
Absorto, na
contemplação do veio que corria entre as pedras negras que circundavam o leito,
não pressenti a aproximação dos três incautos. Quando registrei a presença já
era tarde demais para uma fuga; eles haviam me visto e eu não podia mais
impedir o desenrolar da tragédia.
-- Pescando
sonhos? Soou a voz zombeteira daquele que liderava o bando.
-- Sigam seu
caminho e me deixem em paz! Respondi em minha sombria entonação.
-- Hum, o rapaz
é perigoso! Voltou a zombar o mesmo homem.
Mesmo estado de
costas para eles, eu senti o tremor dos outros dois, mas aquele que se
manifestava parecia olvidar os avisos naturais que minhas energias emanavam.
Sem quebrar a harmonia que me envolvia, levantei-me permanecendo de costas para
eles.
-- Não é uma
boa idéia querer me desafiar.
-- Estou
morrendo de medo. O riso de escárnio ecoou no ar.
-- Eu tentei
evitar o pior.
Sim, eu havia
tentado evitar que outra vida fosse desperdiçada, mas meu interlocutor tinha a
convicção de que poderia me derrotar. Sem demonstrar qualquer reação, esperei
que ele agisse. O golpe nem chegou a ser completado; num movimento silencioso e
preciso, agarrei-o pelo pescoço, rodopiei seu débil corpo sobre a cabeça
terminando por atirá-lo no leito revolto do riacho.
-- Também
desejam mergulhar? Perguntei ainda sem olhar para os outros dois.
Não houve
resposta a minha indagação, apenas o som de pés se afastando afoitos e aos
tropeções pela mesma trilha que os tinha levado até mim. Melhor assim, eu não
precisava mais desperdiçar nenhuma vida e eles não testemunhavam as lágrimas,
que se libertavam de meu âmago, rolarem por minhas faces.
Passado o
impacto do ataque e da defesa, atirei-me ao encontro das águas. O corpo do
infeliz não podia ficar jogado em qualquer lugar. O caos reinante não englobava
apenas a flora do planeta. Os animais, depois de sofrerem tantos abusos de
cientistas e afins, foram afetados pelos resultados das experiências nocivas as
quais eram submetidos. Onde antes se via uma fauna composta por animais
domésticos ou de laboratórios, agora se encontravam verdadeiras feras.
O trio não podia
morar longe do local onde estávamos. Nenhum humano se atrevia a percorrer mais
do que algumas centenas de metros distante do centro em que se concentravam. O
aglomerado humano estaria em risco se eu deixasse o cadáver sem destinação. O
odor de sua decomposição atrairia a atenção das feras e o resultado seria
sangrento.
Resgatar o
corpo não foi fácil. Apesar de pouco profundo, a correnteza do riacho era
suficientemente forte para levar o corpo quilômetros além do ponto onde o
confronto ocorreu. Localizado os restos mortais, retirei-o das águas, tentei
recompor sua aparência, mas o estrago tinha deixado uma cicatriz visível em seu
pescoço. Transportá-lo não era problema, o mais trabalhoso seria descobrir onde
se localizava o reduto ocupado pelos humanos.
Dois dias
depois de uma jornada sem trégua cheguei a um terreno propício para a
instalação de um povoado. Utilizando meus sentidos super-desenvolvidos, soube a
direção a ser tomada. Minha entrada no povoado foi acompanhada por olhares
surpresos, amedrontados e zangados. Não me importei com nenhuma das
manifestações, meu objetivo era livrar-me do cadáver e seguir meu caminho.
-- Não gostamos
de estranhos em nossa cidade. A voz não combinava com o aspecto rude do gigante
que barrou meu avanço.
-- Não desejo
permanecer em seu “povoado”. Frisei bem a palavra num tom desafiador. Trouxe
este infeliz para que vocês possam dar-lhe um enterro digno.
-- E por que
faríamos isso?
-- Devem
conhecê-lo.
-- Nunca o
vimos por aqui.
-- Se o
deixasse onde o encontrei, os animais seriam atraídos para cá e vocês teriam,
sérios problemas.
-- Nossos
problemas nós resolvemos. Este cadáver é problema seu, resolva-o.
-- A segurança
do seu “povoado” não é problema meu, assim largo-o por aí. Novamente
enfatizando a palavra povoado, virei-me para deixar o povoado.
-- Espere!
Desta vez a voz que soou era mais melódica. Não queremos confusão em nossa
cidade.
-- Por que não
o enterram?
-- Nós sabemos
quem ele é. Seus irmãos virão se vingar caso façamos o que nos pede.
-- Eles
preferem que o corpo do irmão seja destroçado por animais indomáveis?
-- Eles
pensarão que quem o matou é daqui e virão atrás de vingança.
-- Não possuem
um cemitério?
-- Não.
-- Como tratam
seus mortos?
-- Nós os
queimamos.
-- Certo.
Queimem este também.
-- Não
podemos... seus irmãos...
-- Deixem que
dos irmãos eu cuido.
-- Não pode
chegar aqui e querer fazer justiça com suas próprias mãos. Nós temos leis em
nossa cidade.
-- Não pretendo
fazer justiça, apenas impedir que os irmãos do morto os incomodem.
-- Não queremos
vampiros em nossa cidade!
Desta vez o
homem revelou o real impedimento para minha presença no povoado. Eu nunca
tentei disfarçar quem eu sou, sempre tive orgulho de ser quem sou, mas desde
que o caos se instalou e o remédio me transformou em um quase humano, eram
poucos que conseguiam identificar minha condição.
-- Já perdi
tempo demais com vocês. Vou providenciar para que o corpo seja incinerado e
depois deixo-os com seus “problemas”.
-- Não! A
mulher que se manifestara voltou a se pronunciar. Se vai mesmo queimar seu
corpo, fique para nos defender dos irmãos.
-- Não quero
criar conflitos para vocês. Sou um andarilho solitário, estou acostumado à
solidão.
-- Por favor,
fique.
A pira consumiu
o cadáver rapidamente. Além dos elementos comuns a tais procedimentos, os
moradores do povoado guardavam uma considerável quantidade de combustível,
herança dos tempos gloriosos dos humanos. Alimentado por mais este elemento, o
fogo devorou o corpo em pouco tempo.
-- Vai ficar? A
mulher voltou a perguntar.
-- Quem são os
irmãos do morto? Por que os temem tanto?
-- Eles não são
humanos; pelo menos não iguais a nós.
-- Entendo.
-- Ficará?
-- Se for o
desejo de todos.
-- É.
-- Menos do
gigante que me abordou.
-- Ele não é
mal. Agiu conforme determina seu posto, ele é nosso guardião.
-- Se os irmãos
forem o que penso que são, precisam obedecer sem discussão.
-- Pretende
enfrentá-los sozinho?
-- Eu sei como
derrotá-los.
-- Sendo assim,
venha, aproveite o tempo que tem antes da batalha.
De hostilizado
a bem servido em uma fração de segundos. Levado até a estalagem do local, fui
servido com fartura. Satisfeita a primeira necessidade, um quarto foi preparado
com esmero. Assim que me instalei batidas suaves me fizeram abrir a porta. Uma
jovem de beleza singular surgiu, sem esperar aprovação, foi entrando e
preparando a banheira.
-- O que faz?
-- Devo
tratá-lo com amabilidade. Seu banho está pronto.
Ter a presença
de uma fêmea era algo que eu nem me lembrava mais. O ostracismo que eu havia me
imposto exigia que eu mantivesse relacionamentos instantâneos com os poucos
humanos que cruzavam meu caminho. Apesar da beleza, da delicadeza, do perfume e
de todos os outros encantos da jovem, eu declinei seus serviços sexuais.
Aceitei sua companhia, mas apenas isso.
Uma semana
inteira eu desfrutei da hospitalidade do lugar. Sempre que anoitecia eu me
colocava em alerta sondando os arredores, mas até então nem sinal dos irmãos do
morto. Se eles estavam pretendendo se vingar, talvez estivessem esperando que
eu deixasse o povoado. Levei minhas suspeitas aos moradores sugerindo que eu
simulasse uma partida; eles ficaram assustados, mas concordaram com meu plano,
desde que eu não me afastasse muito.
A tática deu
resultado. Os irmãos não esperaram nem duas ou mais noites para atacar.
Deixando claro que eu partia logo ao amanhecer, eles se aproximaram do povoado
com maior liberdade. Do local onde eu havia me ocultado, eu podia vê-los com
nitidez. Acompanhei seus passos durante todo o dia e quando a noite desceu, eu
estava pronto para impedir um massacre.
Noite sem luar.
A névoa densa se acumulando entre as rústicas construções. Moradores recolhidos
em seus medos. Duas silhuetas sinistras circulam sem o menor cuidado.
Despreocupados por julgarem que eu abandonei o povoado, eles se mostram em suas
verdadeiras formas; as orelhas pontudas, os olhos aguçados, as narinas
projetadas para frente, os pelos grossos, o uivo lancinante; há anos que eu não
me encontrava com essa espécie traiçoeira.
Ao pressentir
que o ataque era iminente, projetei-me no espaço rumo ao povoado. Minha
silhueta teria criado uma gigantesca sombra caso a noite não estivesse tão
escura. Sem o menor ruído eu me coloquei diante da entrada do povoado. Meu
cheiro e as energias que eu emanava chegariam ao olfato das bestas, mas eu não
me importava; a sorte havia sido lançada e não tinha mais como voltar atrás.
A aproximação
dos agressores foi lenta. Sem ter porque se sentirem ameaçados, eles procuravam
despertar o terror em suas vítimas. Não fosse pela forma animalesca, eu poderia
jurar que eles riam enquanto circundavam o povoado. Os rosnados suaves serviam
para se comunicarem; as breves corridas indicavam que eles se divertiam com seu
modo de agir. Em breve eles teriam uma surpresa muito desagradável.
O uivo selvagem
que ganhou a noite foi o aviso de que meus adversários haviam detectado minha
presença. A distância entre nós não permitia uma fuga, mesmo que eles seguissem
em direções opostas, eu conseguiria confrontar ambos. A melhor estratégia, eles
devem ter imaginado, era me enfrentarem unidos.
Olhares
temerosos acompanharam o desenrolar do combate. Eu não estava preocupado com as
reações dos humanos, minha mente estava focada no duelo, mas meus ouvidos
captavam as variações das respirações entre um golpe e outro. A torcida era
toda favorável e apesar disso eu sentia que alguns me odiavam tanto quanto às
bestas.
O primeiro a
atacar foi o maior. Seu salto mirou minha cabeça, mas eu consegui evitar o
contato. Antes que tivesse refeito, o segundo atacou meus membros inferiores. O
maxilar potente fechou-se contra minha perna direita. A dor não chegou a
incomodar e os espasmos de euforia da besta me deram a vantagem que eu
precisava para reverter a situação. Esquecendo a fera maior, levei minhas mãos
à mandíbula presa em minha perna, separei-a em duas partes com um único
movimento. O sangue jorrou em profusão e a besta tombou sem o menor ruído.
O triunfo foi
efêmero. A outra besta lançou-se sobre meu corpo com todas suas forças. O
impacto jogou-me ao chão sem que a besta permitisse que eu recuperasse uma posição
vantajosa. O peso do corpo peludo provocou uma sensação de asfixia, eu estava em
desvantagem, mas não derrotado.
Os dentes
penetraram minha carne na altura do peito. O sangue vazou empapando minhas
vestes, minha mente rodopiou, eu tinha que reverter nossas posições ou a besta
exterminaria o último representante de minha espécie.
Sentindo as
presas se afundarem mais e mais em minha carne, mantive a concentração focada
na resistência que o peso da besta oferecia aos meus movimentos. Assim que
consegui energia suficiente para reagir, elevei minha destra até os olhos da
criatura afundando meus dedos em ambas as órbitas oculares.
O urro de dor
ecoou longe. A besta perdeu a vantagem e quando tentou retomar a posição eu já
avançava sobre sua jugular. O sangue penetrou lentamente em minha garganta.
Após anos sem experimentar o sabor do precioso líquido, eu me senti enjoado com
o contato tépido e viscoso descendo por minhas entranhas. Um brilho espontâneo
luziu em meu olhar, a vitória estava garantida. Forças combalidas, eu quedei
sem poder controlar os tremores que me dominavam.
Ao despertar
constatei estar deitado sobre um leito macio e quente. O frio proveniente do
exterior não me incomodava. Ao olhar para o lado encontrei o corpo desnudo e
macio da mesma jovem que havia me atendido antes do combate. Seus cabelos
caídos sobre as costas davam a impressão de uma delicada túnica cobrindo-a.
-- Sente-se
bem? A entrada de uma mulher me tirou do encanto em que me encontrava.
-- Sim.
-- Também
depois de nove dias desacordado...
-- Nove dias!
-- Não se
preocupe. As bestas foram derrotadas e somos gratos por sua bravura.
Ainda não foi
desta vez que coloquei fim a minha sina de andarilho solitário, mas os
atrativos que estavam a meu dispor eram mais fortes do que minha determinação
em seguir viagem. Por enquanto, eu me permitiria um repouso, uma temporada de
acasalamento e festas, mas eu sabia que em breve minha condição de amaldiçoado
falaria mais alto e eu voltaria a errar por esta Terra devastada.
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