quinta-feira, 11 de outubro de 2012

A EXISTÊNCIA NO CAOS


Sem perspectivas eu erro por uma Terra devastada. Os anos de glória da raça humana se foram, agora as trevas e o caos dominam aquele que já foi o berço de uma espécie arrogante e irresponsável. Eu nem deveria estar mais por aqui, mas minha maldição se mostrou mais ferrenha do que a desgraça que se abateu sobre os outros que eram iguais a mim.

Antes do último troar da derrocada, fomos ludibriados por nossa vã esperança de podermos reverter a maldição que nos perseguia. Um remédio miraculoso prometia nos livrar do mal que consumia nossas almas, mas tudo não passou de uma quimera, ao menos para aqueles que se tornaram vítimas de nossa própria... esperança...

Talvez seja por este motivo que eu ainda erro por este mundo caótico; eu jamais tive esperança. Não de um remédio produzido por mãos e mentes conectadas com o mundo material. Nossa maldição teve origem em um plano muito distante deste que ocupo. Eu sabia que o mal que nos devorava não poderia ser debelado por uma ação grosseira.

Enquanto assistia a todos serem consumidos pelo efeito do remédio, eu enfraquecia, perdia-me em miragens fantasmagóricas, debatia-me em dores impossíveis de serem suportadas por outro ser vivente, mas no fim eu sobrevivi.

Já não preciso mais me ocultar nas sombras. Os humanos que sobreviveram estão tão absorvidos por sua própria danação que já não represento mais nenhuma ameaça. É certo que também não me alimento mais de suas energias; nisso o remédio ajudou. Depois da crise inicial, eu passei a me sentir quase humano. Os alimentos deixaram de ser insossos; a água refrescava e abrandava minha sede; a luz solar não em causava mais fustigação; eu comecei a acreditar que havia conseguido.

Tolo! Eu também me iludia!

Os anos seguintes me mostraram o quanto eu estava enganado. Misturado ao bando de seres que vagavam fugindo do caos que se instalou após a deflagração do último conflito humano, fui confrontado com minha nova situação. Em muitas ocasiões tive que me defender e sempre que o fazia, o resultado era sombrio. Corpos mutilados, pessoas feridas de morte, sangue fluindo por ferimentos indescritíveis, e eu sempre me sentindo mais forte.

Por este motivo me tornei um nômade solitário. Sem ter companhia de outros, não tinha como ser agente de mais destruição. Tudo se passou perfeitamente bem nos primeiros cinco anos, mas então a sina de predador prevaleceu. Não por minha vontade, mas pela insensatez dos humanos.

Há dias vagando sem destino por uma área com árvores carbonizadas, encontrei uma corrente de água; fato muito raro neste mundo desprovido de recursos naturais. Aproveitei o ermo da paisagem para permanecer inativo por alguns dias, um erro que não justifica a idiotice daqueles que me encontraram, mas que me causa incômodos anímico sucessivos.

Absorto, na contemplação do veio que corria entre as pedras negras que circundavam o leito, não pressenti a aproximação dos três incautos. Quando registrei a presença já era tarde demais para uma fuga; eles haviam me visto e eu não podia mais impedir o desenrolar da tragédia.

-- Pescando sonhos? Soou a voz zombeteira daquele que liderava o bando.

-- Sigam seu caminho e me deixem em paz! Respondi em minha sombria entonação.

-- Hum, o rapaz é perigoso! Voltou a zombar o mesmo homem.

Mesmo estado de costas para eles, eu senti o tremor dos outros dois, mas aquele que se manifestava parecia olvidar os avisos naturais que minhas energias emanavam. Sem quebrar a harmonia que me envolvia, levantei-me permanecendo de costas para eles.

-- Não é uma boa idéia querer me desafiar.

-- Estou morrendo de medo. O riso de escárnio ecoou no ar.

-- Eu tentei evitar o pior.

Sim, eu havia tentado evitar que outra vida fosse desperdiçada, mas meu interlocutor tinha a convicção de que poderia me derrotar. Sem demonstrar qualquer reação, esperei que ele agisse. O golpe nem chegou a ser completado; num movimento silencioso e preciso, agarrei-o pelo pescoço, rodopiei seu débil corpo sobre a cabeça terminando por atirá-lo no leito revolto do riacho.

-- Também desejam mergulhar? Perguntei ainda sem olhar para os outros dois.

Não houve resposta a minha indagação, apenas o som de pés se afastando afoitos e aos tropeções pela mesma trilha que os tinha levado até mim. Melhor assim, eu não precisava mais desperdiçar nenhuma vida e eles não testemunhavam as lágrimas, que se libertavam de meu âmago, rolarem por minhas faces.

Passado o impacto do ataque e da defesa, atirei-me ao encontro das águas. O corpo do infeliz não podia ficar jogado em qualquer lugar. O caos reinante não englobava apenas a flora do planeta. Os animais, depois de sofrerem tantos abusos de cientistas e afins, foram afetados pelos resultados das experiências nocivas as quais eram submetidos. Onde antes se via uma fauna composta por animais domésticos ou de laboratórios, agora se encontravam verdadeiras feras.

O trio não podia morar longe do local onde estávamos. Nenhum humano se atrevia a percorrer mais do que algumas centenas de metros distante do centro em que se concentravam. O aglomerado humano estaria em risco se eu deixasse o cadáver sem destinação. O odor de sua decomposição atrairia a atenção das feras e o resultado seria sangrento.

Resgatar o corpo não foi fácil. Apesar de pouco profundo, a correnteza do riacho era suficientemente forte para levar o corpo quilômetros além do ponto onde o confronto ocorreu. Localizado os restos mortais, retirei-o das águas, tentei recompor sua aparência, mas o estrago tinha deixado uma cicatriz visível em seu pescoço. Transportá-lo não era problema, o mais trabalhoso seria descobrir onde se localizava o reduto ocupado pelos humanos.

Dois dias depois de uma jornada sem trégua cheguei a um terreno propício para a instalação de um povoado. Utilizando meus sentidos super-desenvolvidos, soube a direção a ser tomada. Minha entrada no povoado foi acompanhada por olhares surpresos, amedrontados e zangados. Não me importei com nenhuma das manifestações, meu objetivo era livrar-me do cadáver e seguir meu caminho.

-- Não gostamos de estranhos em nossa cidade. A voz não combinava com o aspecto rude do gigante que barrou meu avanço.

-- Não desejo permanecer em seu “povoado”. Frisei bem a palavra num tom desafiador. Trouxe este infeliz para que vocês possam dar-lhe um enterro digno.

-- E por que faríamos isso?

-- Devem conhecê-lo.

-- Nunca o vimos por aqui.

-- Se o deixasse onde o encontrei, os animais seriam atraídos para cá e vocês teriam, sérios problemas.

-- Nossos problemas nós resolvemos. Este cadáver é problema seu, resolva-o.

-- A segurança do seu “povoado” não é problema meu, assim largo-o por aí. Novamente enfatizando a palavra povoado, virei-me para deixar o povoado.

-- Espere! Desta vez a voz que soou era mais melódica. Não queremos confusão em nossa cidade.

-- Por que não o enterram?

-- Nós sabemos quem ele é. Seus irmãos virão se vingar caso façamos o que nos pede.

-- Eles preferem que o corpo do irmão seja destroçado por animais indomáveis?

-- Eles pensarão que quem o matou é daqui e virão atrás de vingança.

-- Não possuem um cemitério?

-- Não.

-- Como tratam seus mortos?

-- Nós os queimamos.

-- Certo. Queimem este também.

-- Não podemos... seus irmãos...

-- Deixem que dos irmãos eu cuido.

-- Não pode chegar aqui e querer fazer justiça com suas próprias mãos. Nós temos leis em nossa cidade.

-- Não pretendo fazer justiça, apenas impedir que os irmãos do morto os incomodem.

-- Não queremos vampiros em nossa cidade!

Desta vez o homem revelou o real impedimento para minha presença no povoado. Eu nunca tentei disfarçar quem eu sou, sempre tive orgulho de ser quem sou, mas desde que o caos se instalou e o remédio me transformou em um quase humano, eram poucos que conseguiam identificar minha condição.

-- Já perdi tempo demais com vocês. Vou providenciar para que o corpo seja incinerado e depois deixo-os com seus “problemas”.

-- Não! A mulher que se manifestara voltou a se pronunciar. Se vai mesmo queimar seu corpo, fique para nos defender dos irmãos.

-- Não quero criar conflitos para vocês. Sou um andarilho solitário, estou acostumado à solidão.

-- Por favor, fique.

A pira consumiu o cadáver rapidamente. Além dos elementos comuns a tais procedimentos, os moradores do povoado guardavam uma considerável quantidade de combustível, herança dos tempos gloriosos dos humanos. Alimentado por mais este elemento, o fogo devorou o corpo em pouco tempo.

-- Vai ficar? A mulher voltou a perguntar.

-- Quem são os irmãos do morto? Por que os temem tanto?

-- Eles não são humanos; pelo menos não iguais a nós.

-- Entendo.

-- Ficará?

-- Se for o desejo de todos.

-- É.

-- Menos do gigante que me abordou.

-- Ele não é mal. Agiu conforme determina seu posto, ele é nosso guardião.

-- Se os irmãos forem o que penso que são, precisam obedecer sem discussão.

-- Pretende enfrentá-los sozinho?

-- Eu sei como derrotá-los.

-- Sendo assim, venha, aproveite o tempo que tem antes da batalha.

De hostilizado a bem servido em uma fração de segundos. Levado até a estalagem do local, fui servido com fartura. Satisfeita a primeira necessidade, um quarto foi preparado com esmero. Assim que me instalei batidas suaves me fizeram abrir a porta. Uma jovem de beleza singular surgiu, sem esperar aprovação, foi entrando e preparando a banheira.

-- O que faz?

-- Devo tratá-lo com amabilidade. Seu banho está pronto.

Ter a presença de uma fêmea era algo que eu nem me lembrava mais. O ostracismo que eu havia me imposto exigia que eu mantivesse relacionamentos instantâneos com os poucos humanos que cruzavam meu caminho. Apesar da beleza, da delicadeza, do perfume e de todos os outros encantos da jovem, eu declinei seus serviços sexuais. Aceitei sua companhia, mas apenas isso.

Uma semana inteira eu desfrutei da hospitalidade do lugar. Sempre que anoitecia eu me colocava em alerta sondando os arredores, mas até então nem sinal dos irmãos do morto. Se eles estavam pretendendo se vingar, talvez estivessem esperando que eu deixasse o povoado. Levei minhas suspeitas aos moradores sugerindo que eu simulasse uma partida; eles ficaram assustados, mas concordaram com meu plano, desde que eu não me afastasse muito.

A tática deu resultado. Os irmãos não esperaram nem duas ou mais noites para atacar. Deixando claro que eu partia logo ao amanhecer, eles se aproximaram do povoado com maior liberdade. Do local onde eu havia me ocultado, eu podia vê-los com nitidez. Acompanhei seus passos durante todo o dia e quando a noite desceu, eu estava pronto para impedir um massacre.

Noite sem luar. A névoa densa se acumulando entre as rústicas construções. Moradores recolhidos em seus medos. Duas silhuetas sinistras circulam sem o menor cuidado. Despreocupados por julgarem que eu abandonei o povoado, eles se mostram em suas verdadeiras formas; as orelhas pontudas, os olhos aguçados, as narinas projetadas para frente, os pelos grossos, o uivo lancinante; há anos que eu não me encontrava com essa espécie traiçoeira.

Ao pressentir que o ataque era iminente, projetei-me no espaço rumo ao povoado. Minha silhueta teria criado uma gigantesca sombra caso a noite não estivesse tão escura. Sem o menor ruído eu me coloquei diante da entrada do povoado. Meu cheiro e as energias que eu emanava chegariam ao olfato das bestas, mas eu não me importava; a sorte havia sido lançada e não tinha mais como voltar atrás.

A aproximação dos agressores foi lenta. Sem ter porque se sentirem ameaçados, eles procuravam despertar o terror em suas vítimas. Não fosse pela forma animalesca, eu poderia jurar que eles riam enquanto circundavam o povoado. Os rosnados suaves serviam para se comunicarem; as breves corridas indicavam que eles se divertiam com seu modo de agir. Em breve eles teriam uma surpresa muito desagradável.

O uivo selvagem que ganhou a noite foi o aviso de que meus adversários haviam detectado minha presença. A distância entre nós não permitia uma fuga, mesmo que eles seguissem em direções opostas, eu conseguiria confrontar ambos. A melhor estratégia, eles devem ter imaginado, era me enfrentarem unidos.

Olhares temerosos acompanharam o desenrolar do combate. Eu não estava preocupado com as reações dos humanos, minha mente estava focada no duelo, mas meus ouvidos captavam as variações das respirações entre um golpe e outro. A torcida era toda favorável e apesar disso eu sentia que alguns me odiavam tanto quanto às bestas.

O primeiro a atacar foi o maior. Seu salto mirou minha cabeça, mas eu consegui evitar o contato. Antes que tivesse refeito, o segundo atacou meus membros inferiores. O maxilar potente fechou-se contra minha perna direita. A dor não chegou a incomodar e os espasmos de euforia da besta me deram a vantagem que eu precisava para reverter a situação. Esquecendo a fera maior, levei minhas mãos à mandíbula presa em minha perna, separei-a em duas partes com um único movimento. O sangue jorrou em profusão e a besta tombou sem o menor ruído.

O triunfo foi efêmero. A outra besta lançou-se sobre meu corpo com todas suas forças. O impacto jogou-me ao chão sem que a besta permitisse que eu recuperasse uma posição vantajosa. O peso do corpo peludo provocou uma sensação de asfixia, eu estava em desvantagem, mas não derrotado.

Os dentes penetraram minha carne na altura do peito. O sangue vazou empapando minhas vestes, minha mente rodopiou, eu tinha que reverter nossas posições ou a besta exterminaria o último representante de minha espécie.

Sentindo as presas se afundarem mais e mais em minha carne, mantive a concentração focada na resistência que o peso da besta oferecia aos meus movimentos. Assim que consegui energia suficiente para reagir, elevei minha destra até os olhos da criatura afundando meus dedos em ambas as órbitas oculares.

O urro de dor ecoou longe. A besta perdeu a vantagem e quando tentou retomar a posição eu já avançava sobre sua jugular. O sangue penetrou lentamente em minha garganta. Após anos sem experimentar o sabor do precioso líquido, eu me senti enjoado com o contato tépido e viscoso descendo por minhas entranhas. Um brilho espontâneo luziu em meu olhar, a vitória estava garantida. Forças combalidas, eu quedei sem poder controlar os tremores que me dominavam.

Ao despertar constatei estar deitado sobre um leito macio e quente. O frio proveniente do exterior não me incomodava. Ao olhar para o lado encontrei o corpo desnudo e macio da mesma jovem que havia me atendido antes do combate. Seus cabelos caídos sobre as costas davam a impressão de uma delicada túnica cobrindo-a.

-- Sente-se bem? A entrada de uma mulher me tirou do encanto em que me encontrava.

-- Sim.

-- Também depois de nove dias desacordado...

-- Nove dias!

-- Não se preocupe. As bestas foram derrotadas e somos gratos por sua bravura.

Ainda não foi desta vez que coloquei fim a minha sina de andarilho solitário, mas os atrativos que estavam a meu dispor eram mais fortes do que minha determinação em seguir viagem. Por enquanto, eu me permitiria um repouso, uma temporada de acasalamento e festas, mas eu sabia que em breve minha condição de amaldiçoado falaria mais alto e eu voltaria a errar por esta Terra devastada.

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