Dezembro!
Novamente as ruas se cobrem de brilho e... hipocrisia! Caminhando entre a
massa, anônimo como me interessa, observo as manifestações que irrompem aqui e
ali. Ainda não estou a procura daquele que irá saciar minha sede, mas sinto
asco de tudo que observo. Mulheres, homens e crianças perambulando carregadas
de embrulhos ou em pirraças insuportáveis...
Próximo a
entrada de uma grande loja, vitrines ricamente decoradas com motivos da época,
refreio minha caminhada permitindo que a ironia preencha o vazio de minha
alma... será que ainda possuo uma? Minha morbidez não faz sucumbir minha
indignação, a menos de cinco metros, ao lado da cintilante vitrine, um bando de
crianças mal cheirosas e esfarrapadas disputa as migalhas que lhes atiram...
neste momento me pergunto o que mesmo estão prestes a celebrar?
Minha mente abstrai
perdendo-se em cenas menos hipócritas... houve um tempo, em alguns poucos
lugares, envolvendo umas poucas pessoas, em que a data tinha um sentido
louvável, uma razão de ser... mas já faz tanto tempo...
O ruído
ensurdecedor das buzinas me traz de volta a realidade, não posso me dar ao luxo
de distrair meus pensamentos, tenho que manter a atenção no vai e vem das
pessoas... essa é mais uma ironia, eu que já fui temido por ter minha existência
associada ao Inferno, que já fui respeitado pela coragem demonstrada em
inúmeras batalhas, tenho que tomar cuidado com os marginais que dividem o
espaço das ruas com pessoas de bem... de bem? Bom, isso depende do conceito que
se utiliza para analisá-las.
As horas vão
avançando e continuo minha caminhada sem destino; o crepúsculo se aproxima e
sinto minha sede começar a me incomodar; neste momento não é ironia, mas
melancolia o que sinto assomar meu ser... tantos se embebedando, se fartando de
guloseimas enquanto outros são obrigados a se contentar com restos encontrados
nas lixeiras ou mesmo nas sarjetas das ruas... minha sede se torna
desprezível...
Mesmo que
desejasse saciar minha necessidade, não encontraria fonte onde pudesse
saciar-me... a maioria está tão preenchida por sua arrogância, por seu egoísmo
que o sangue não possui apelo que me atraia; aqueles que possuem o sangue emanando
o doce sabor da saciedade não me parecem ser adequados a se tornarem minha
vítima...
Por que ainda
me martirizo por me considerar um ser maldito!
A noite chegou
e eu ainda não encontrei razão para atender ao apelo de minha sede; desde que a
hipocrisia se instalou como veste preferida da maioria, fui obrigado a
controlar minha necessidade; tenho que aguardar ou corro o risco de sorver o
cálice sem lhe sentir o sabor saciante.
Algumas
mulheres me lançam olhares repletos de desejos... não fazem idéia do quão
pueril me parecem... poderia atender aos desejos mais recônditos...
conceder-lhes prazeres que nem mesmo são capazes de imaginar... mas não é essa
a necessidade que fustiga meu ser... minha ânsia é por uma taça menos
glamourosa, mas mais vital... ao menos para mim.
Um sentimento
desconfortável assoma minha mente quando me dou conta de onde me encontro; o
estilo gótico é inconfundível; a catedral domina a paisagem, mas mesmo aqui a
sombra da hipocrisia ofusca o brilho da simplicidade dAquele a quem deveriam
estar celebrando o nascimento.
O coro
proveniente das entranhas da catedral me força a uma nova digressão em direção
ao passado; o cântico angelical já brotou de minha alma... o frio que castigava
o local em que nasci não tirava o ânimo das meninas e dos meninos que se
perfilavam diante da platéia atenta composta pelos familiares e amigos... eu
assistia a tudo... a margem de tudo... talvez por isso eu possa avaliar o
sentimento que habita o âmago dos deserdados de hoje...
A majestosa
construção mantém suas portas abertas, mas a freqüência impede os necessitados
de adentrarem seu portal... eu não me sinto intimidado pelo luxo dos
presentes... quem poderia supor que alguém como eu não possui o menor receio de
entrar em um lugar desse?... lendas... as lendas nos tornaram mais demoníacos
do que realmente somos...
Não lamento as
conseqüências das mentiras que foram, e ainda são, propaladas mundo a fora...
na verdade não me importo com nada que seja externo ao meu existir... mas e
quanto ao aniversariante?... mesmo quando eu ainda era como todos os outros,
antes de ser osculado por minha maldição, a Verdade já tinha sucumbido ao lamaçal
das mentiras criadas para justificar a ganância... a crueldade... o ódio...
Esta é uma
lenda que não possui o menor senso de lucidez.
Não preciso
manter minha atenção focada no rito professado pelo sacerdote, já o testemunhei
tantas vezes que seria capaz de apresentá-lo com a mesma desenvoltura do homem
que o faz no momento... mantenho-me atento aos presentes... na maioria esnobes
querendo mostrar ostentação mais imponente do que a daquele que está ao seu
lado...
Não sou nenhum
juiz, também não sou injusto em minhas observações, entre tantos arrogantes
encontro alguns que se mantém fiéis aos preceitos ditados por seus corações,
mas mesmo entre eles existem alguns que se utilizam de máscaras para esconder o
verdadeiro anseio que alimenta seus interesses...
Minha passagem
pela catedral só serviu para aumentar minha indignação... a suntuosidade não
habilita à sagração, pelo contrário, na maioria das vezes ela sepulta qualquer
manifestação mais espontânea de se querer o bem... de se tornar digno da portar
o símbolo da Vida... não a cruz da morte com a qual insistem em adornar seus
templos.
E ainda afirmam
que eu temo a visão deste símbolo infame...
Deixo o
ambiente templário mergulhando na escuridão das ruas adjacentes, tudo se mostra
tão imensuravelmente diferente que se poderia acreditar estar em qualquer outra
época do ano. Aqui em meio as trevas noturnas não se nota o menor indício de
festejos ou celebrações... a imundice domina soterrando as ilusões de que é
época de Amor...
Cedo a minha
indignação ignorando meu desejo de anonimato, ao aproximar-me de um grupo de
esquecidos pelo mundo, sinto o fedor acre das substâncias que eliminam sem o
menor senso de higiene... posso refutar os cheiros incômodos, mas não o faço...
a pequena que chora ao lado de uma senhora raquítica e alienada olha-me com um
rogo de piedade tão intenso que não posso ignorar... eu a estreito em meus
braços, sinto o odor atraente do sangue que corre em suas veias, sei que ele
não tem o vigor de um corpo mais viril, mas isso não invalida a atração que ele
exerce sobre meus instintos.
De repente
parece-me que estou diante do espectro de minha alma amaldiçoada... sinto como
se meus próprios olhos me observassem da escuridão... a sensação é tão forte
que ouço o riso sarcástico de uma entidade maligna me confrontando com minha
natureza predadora.
Não! Eu não vou
macular a alma desta pequena!
Eu me recuso a
impingir-lhe um jugo tão pesado.
Mas o ser
demente que me atormenta, a maldita fera que tento manter aprisionada em meu
íntimo, sopra em meus ouvidos insinuações que convenceriam qualquer um de que
sorver a seiva desta pequena criatura seria um favor, não um holocausto, uma
ação ignóbil... extinguir o sofrimento que martiriza o corpo impedindo que a
alma alce vôo aos paramos eternos...
Minhas mãos são
como prensas prontas a fragmentar os frágeis ossos que tenho envoltos em meu
abraço... minhas presas armas infalíveis prontas para romperem a diáfana carne
que represa o sangue precioso... minha sede a mola propulsora, o gatilho que
pode disparar, a qualquer momento, minha sanha de assassino.
A mulher me
olha esperançosa... não sei se ela sabe o que sou, mas interpreto seu olhar
como o rogo desesperado de quem já não consegue mais divisar a mais ínfima
réstia de esperança... ela também deseja que eu me transforme no instrumento de
misericórdia final... é triste testemunhar que muitos acreditam que a única
misericórdia que lhes resta seja o beijo frio da morte... custa-me lembrar em
que época estamos...
Não serei o
instrumento de execução de uma sentença que não foi dada por mim...
Levanto-me num
ímpeto... quero deixar tudo para trás e assumir minha maldita existência;
elevar-me sobre os arranha-céus até localizar o maldito que saciará minha sede,
cair sobre seu corpo vibrante e abandoná-lo jogado sobre o chão imundo de uma
rua qualquer... mas não... não é esta a atitude que escolho...
Outra vez a
irônica pergunta que me atormenta em momentos de reflexão... serei tão maldito
assim?
Rebelando-me
contra minha condição, seguro o corpo frágil com mais força, trago-o para junto
de meu peito, estendo minha mão para a mulher convidando-a a segurá-la.
Titubeante ela atende meu convite, olha-me incrédula, mas decide me acompanhar.
Em seu íntimo ela imagina que eu não queira cumprir minha sina ali, no meio
daquela imundice toda. Resignada, ela se aconchega mais permitindo que eu a
enlace com facilidade.
Olhares
indiscretos observam quando eu parto conduzindo ambas sem saberem para onde.
Caminho com lentidão devido a fragilidade da mulher, mas mesmo que estivesse distante,
seria capaz de ouvir os comentários que se elevaram na escuridão; as lendas se
mostram mais vivas... as mentiras mais reais do que a verdade, mas isso não me
importa...
Não é um
sacerdote... um homem de bem... um “bom velhinho vestido de vermelho”... um
assistente social... um servidor publico... não... nesta noite fria e triste de
natal quem acolhe e recolhe duas almas perdidas sou eu... um amaldiçoado... um
ser sem alma... um vampiro...
Um comentário:
Bom dia!
Passando para agradecer
sua Amizade durante 2012
e desejar que continuemos
juntos por muitos anos mais...
FELIZ NATAL! Que DEUS ilumine
teu Lar e traga bençãos de
renovação para todos de teu
convivio...Até Breve!
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