quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Cães


A distração com a leitura não me permitiu perceber que os cães latiam por longo tempo durante aquela chuva forte. Bateu à porta, antes que eu pudesse me dar conta de que o alvoroço habitual dos cachorros durava mais que o costume. Mesmo olhando desconfiado pela pequena vigia, com a malícia trazida da cidade, senti a urgência na expressão desesperada do seu olhar, dizia aos prantos que tinha sido seguida e olhava em direção ao portão enquanto praticamente suplicava minha ajuda. Sem me ocorrer o isolamento em que eu me encontrava, e que aquela pequena estrada não era caminho para nenhum lugar, abri e a recebi em minha casa, instintivamente, como qualquer um faria ao ver uma moça em apuros. Tentei acalma-la com gestos, pois ela não parava de falar, narrando histericamente o trauma que acabara de passar na escuridão da estrada.

Foi se acalmando aos poucos na poltrona próxima ao fogo, enquanto eu providenciava toalhas e um conhaque. Demonstrava muita preocupação com a segurança da casa, mas depois, falando mais calmamente e eu comecei a entender o que teria se passado. Tentei tranqüiliza-la quanto à segurança das portas. Falei sobre meus cachorros, tentando dar um ar bem humorado à conversa, contava sobre suas peripécias e sobre o tamanho dos dois. Na verdade eu não acreditava que a história que ela contava pudesse ter acontecido, escondia o meu apavoramento quanto a proximidade do agressor, que poderia estar perto da casa. O que me tranqüilizava um pouco era o silêncio dos animais lá fora.

Entre as opções que me levaram a morar tão longe há apenas dois meses, fazer uso da bicicleta pelos quinze quilômetros que separam a cabana da vila, foi uma delas, o que me impedia naquela situação, de propor leva-la naquela hora da noite a qualquer lugar que fosse. O vizinho mais próximo estava a quase seis quilômetros.

Estando perdida, depois de passar inadvertidamente pela vila, onde pretendia encontrar amigos numa pousada, teve problemas com o carro e decidiu sair caminhando para tentar encontrar ajuda. Disse que percebia que o mato da beira da estrada se mexia conforme ela andava, que teve certeza da maldade na intenção do agressor, que continuava a espreita-la às escondidas por mais que ela apertasse o passo. Disse que quase morreu de medo quando ele pulou em pé na sua frente, logo se pôs sobre as quatro patas e começou a rodeá-la, como um cão traiçoeiro. Disse ainda, que apesar da escuridão e da chuva, tinha certeza de que aquilo não era humano. Nem sabe como conseguiu chegar correndo, mesmo não estando tão longe da minha casa, estava muito apavorada para ter qualquer atitude racional.

Certo de que ela tinha se assustado com algum bicho do mato das redondezas, para convence-la de que não existiam motivos para tanta preocupação, fui até a varanda e comecei a chamar meus cães pelos nomes. Depois de Insistir por alguns minutos sem que eles aparecessem, justifiquei que eles deveriam ter saído à caça do animal que a assustou. Sentindo-se mais calma e protegida na minha casa e em minha companhia, resolveu aceitar minha sugestão e foi descansar. Na manhã seguinte iríamos até vila encontrar seus amigos e conseguiríamos ajuda para o carro.

Ela foi para o quarto e dormiu, depois de uns dois conhaques, mas eu não consegui. Sabia não era possível que meus cachorros tivessem ido tão longe a ponto de não conseguirem ouvir meu chamado. Passei a noite em alerta e muito preocupado perto da lareira. Logo que surgiram as primeiras luzes do dia, sai para dar uma sondada nas redondezas, aproveitei que ela ainda dormia. Precisava explicar a mim mesmo o sumiço dos cachorros. Não encontrando nada em torno da casa, caminhei pela estrada na direção da vila, de onde ela disse que tinha vindo. Depois de uns cem metros encontrei um dos cachorros, morto com o pescoço dilacerado por muitas mordidas, como se tivesse perdido uma luta para um outro cão muito maior, o que é muito difícil, ele era muito grande.

Meio desesperado corri mais alguns metros e encontrei o outro, muito mais machucado, teve a cabeça esmagada por uma grande pedra, estava em farrapos, como se a coisa tivesse tido mais tempo para dar cabo dele. O curioso é que tinha um grande pedaço de pele de animal toda ensangüentada enganchada em suas presas. Pelos pretos, muito grossos, incomuns a qualquer raça de cachorro que eu já tivesse visto.

Depois disso corri de volta para cabana, preocupado com a garota que eu tinha deixado dormindo lá. Quando entrei no quarto nada da moça, só encontrei a cama com os lençóis todos revirados, os travesseiros rasgados, tudo banhado em sangue e a janela aberta. Parte das cortinas para o lado de fora, como se tivessem sido arrastadas por alguém que saísse às pressas por ali.

O pavor me levou a querer sair o mais rápido possível. Corri, pretendia ir para a vila procurar ajuda, mas quando saí da casa dei de cara com os policiais gritando comigo, apontando suas armas, me jogaram no chão e não consegui dizer nada do que tinha acontecido. Eles gritavam muito perguntando pelo corpo.

_Que corpo? Eu já contei isso umas cinqüenta vezes! Ninguém me ouve! Eu nunca tinha visto aquela moça, nem sei o seu nome. Só sei que tem uma coisa muito ruim, muito estranha solta por lá.

_Que corpo? Que corpo?

Um comentário:

MPadilha disse...

Conto muito instigante. Seria a moça um ser do sobrenatural? Quem chamou a policia se estavam tão longe? Acho que daria um ótimo filme de terror, afinal não é assim que terminam, cheio de suspense?
Gostei.