quarta-feira, 9 de abril de 2008

Amigas por toda a eternidade


Feia, de uma magreza esquisita.
A postura alterada acentuava o aspecto da corcunda. A risada nervosa e a voz fininha soavam desagradáveis. A natureza havia pecado inúmeras vezes contra aquela criatura.

Mas nada disso a impedia de sentir-se bem. Fátima criou um personagem e vivia
encerrada na gótica figura, sombria e misteriosa atraía olhares por onde passava, era sempre o centro das atenções.Não era solitária, ao contrário, tinha muitos namoradinhos.

Usava roupas sensuais e botas de cano alto, correntes e o cabelo vermelho bem comprido. Exótica feiúra intoxicante.

Fazia faculdade de letras e escrevia poemas e músicas. Participava de todos os eventos, era popular e querida. A ausência da beleza Fafá compensava em simpatia.
No grupo de amigas Laura era a mais bonita, fazia o gênero Barbie, sempre de salto alto e muitos acessórios:_ nossa a Fá hoje está um horror, coitada da Mortícia Addams. Não avisaram para ela que o ''Halloween'' já passou?

- Que maldade , você não suporta a menina, que implicância
-Está com pena? leva pra tua casa aquela coisa horrível. Deviam proibir de sair na rua.

E Laura continuava rindo e debochando. Passava o tempo inteiro criticando e falando sobre Fátima:- Você não está com inveja? Desculpe mas você não para de falar sobre ela
- Está louca? daquele monstrinho? Tenho pena dela, maior ''sem noção''

-Não deveria. Olha o Carlinhos colado com ela no maior ''amasso''

-Carlinhos? Não acredito. Ela dá pra qualquer um , não vale nada

-Laura, cuidado que isto esta virando doença, obsessão.Fátima realmente saía com muitos homens e não dava a mínima para a opinião das amigas.

Janaína e Laura mal acreditaram quando viram os beijos escandalosos no ponto de ônibus lotado:-estão se devorando..cheios de tesão

-Estou vendo, só queria saber a macumba que ela freqüenta

-Não estou achando graça. Eu estava saindo com o Carlinhos e ele pediu um ''tempo''. O que ele viu nesta ''piranha''?

-Hum....está explicado. Desculpa Laura não sabia, não devia ter brincado, vamos sair daqui?

-Claro que não, vou ver até onde isto vai, se não for minha amiga pode ir embora, vou sozinha

Pegaram o mesmo ônibus e não tocaram mais no assunto. A viagem de quase duas horas até Jacarepaguá foi feita em silêncio. Laura estava furiosa: - Ela é metida a bruxa, vai ver fez mesmo alguma ''simpatia'' para encantar o Carlinhos

- Não viaja Laura. Vão descer no ponto do motel, não disse? Vão transar a tarde toda. Ah, desculpa, eu falo demais

-Cala a boca Janaína, vou dar uma lição nesta ''maga de araque''

Laura estava corroída pelo ciúme e sem medir conseqüências comprou um livro de feitiços na lojinha de artigos religiosos do bairro:- Laura, não faz isso, você é tão bonita, pode ter qualquer homem aos seus pés

-Vou fazer, e sabe de uma coisa? Você está me atrapalhando. Sai daqui, vai pra sua casa e me deixa em paz

Escolheu '' trabalho'' mais forte, invocações com todos os nomes do ''Malvado'', o ódio que trazia no coração era o mais potente dos ingredientes.Estava disposta a ir até o fim e obter resultados.

Fez um feitiço de separação e usou o próprio sangue para fortalecer a magia negra. Um vento estranho soprou no exato momento em que acendia grossas velas negras, um vento cheirando a desgraça.

Coincidência ou não, o casal amanheceu morto no dia seguinte. Um vazamento de gás no banheiro havia posto fim ao romance recém nascido. As famílias e os amigos estavam estarrecidos.

O enterro reuniu uma multidão. Eram queridíssimos e os jornais anunciavam a tragédia como '' O casal de namorados'' e a infeliz tragédia dos amantes apaixonados...Laura sentiu muita raiva, não havia pedido nada disto nos seus feitiços. Queria separar o casal e não matar Carlinhos.


Com o tempo, perdida em remorsos entrou em profunda depressão.Em dois meses desfilava uma apatia e magreza transfigurante. Pintou o cabelo de vermelho como a defunta e o preto era a única cor que se permitia. Longos vestidos negros e maquiagem pesada.Os amigos preocupados tudo faziam ajudar. Laura havia criado um mundo sombrio e vivia reclusa. Os pais decidiram internar a menina, já haviam tentado todos os recursos.

Sentada no pátio da clínica psiquiátrica Laura conversava animadamente com sua melhor amiga, horas e horas compartilhando histórias antigas e muitas risadas. Tinha adquirido a mesma postura curvada de Fátima e os que haviam conhecido a morta ficavam chocados com a absurda semelhança entre as duas meninas: - Fafá. Acho que nunca mais vamos sair daqui, eu não gosto mais de ficar presa neste lugar, quero voltar á faculdade

-Amiga, aqui é tão bonito, cuidam de nós com carinho, ficamos juntas todo o tempo

- Não vai me abandonar Fafá? Você me perdoou não é?

-Claro que perdoei. Vamos ficar juntas para sempre Laura, não se preocupe


Os médicos observavam Laura sozinha no banco do jardim. Após um ano de tratamento ela insistia na amiga imaginária e não interagia com mais ninguém.Os pais iam todo domingo visitar a menina.

Ficavam olhando de longe. Nenhuma tentativa de aproximação surtiu efeito:- Não sabemos mais o que fazer com Laura. Nossa filha está definhando. É uma morta viva. Laura está cada dia mais perdida.

-Estamos fazendo tudo, o caso de Laura é complicado, vamos aguardar o efeito de um novo medicamento, precisamos ser otimistas. Tudo de mais moderno será utilizado no tratamento da sua filha.

Algumas vezes discutindo com o invisível, Laura tinha ataques e desmaiava. Gritava que não conseguia respirar e estava sufocando.

A situação tornou-se crítica.Laura era mantida amarrada á cama. Mesmo sedada ela delirava:- Fátima ? Fale comigo amiga, você está aqui? Fátima não me abandone

-Claro que estou , falta pouco para deixarmos este hospital de malucos

-Você tem certeza? E para onde vamos?

-Vamos para um lugar muito bonito. Não tenha medo, não vou te abandonar, vamos ficar juntas

- Prometeu que nunca ia me deixar sozinha Fafá, você prometeu

-Nunca vou te deixar Laura . Feche os olhos querida, descanse...


Quando os enfermeiros encontram o corpo sem vida de Laura ficaram assustados com a expressão da morta. Um sorriso torto e os olhos muito abertos, as mãos retorcidas como garras. Não houve quem não rezasse uma prece ou fizesse o sinal da cruz. Ninguém acreditou que aquela alma houvesse partido em paz.

4 comentários:

Ana Kaya disse...

Que legal Gi, prendeu a atenção até saber o final.
Meio doido, mas quem não é doido neste mundo de meu Deus?
Adorei, texto grande, com conteúdo.
parabéns.
bjs

MPadilha disse...

Muito bom!
Como saber onde termina a lúcidez e começa a loucura? Um tema muito bem aproveitado Giselli. Beijos

Eduardo dos Anjos disse...

Goticamente gótico e ironicamente irônico...Como é seu estilo!

Pedro Faria disse...

Foda demais. Legal pra caramba Giselle, mais uma pérola sua.
Beijão