sábado, 17 de maio de 2008

Angoleiro




Fica velho o que conhece. Costumeiro, quando os olhares fogem, um silêncio estranho se oferece, nem a tagarelice de Dona Ge se sustenta, incontrolável depois de várias destiladas. Maliciosa, velhaca, recupera ligeiro a sobriedade e cala-se. É olhar em torno e procurar, até os vira-latas se calam nesse clima. Ainda não dá pra saber, mas que há uma razão, isso sim. Uma noite pra não ter saído de casa, mas sai, agora é esperar a hora do pulo, ela sempre chega nessa aura de mistério que toma o ambiente.
Entram dois, desconhecidos, gente de fora, perguntaram coisas por aí e alguém bateu. A traição ressoa na quietude das vielas, muito cedo pra esse silêncio todo. A determinação está estampada nas caras dos sujeitos. Um outro estranho espera do lado de fora. A única a ter coragem de me olhar nos olhos é Ge, muitos anos de conhecimento e fé. Olhou para mim e para o saco de feijão, está lá, sempre muda o esconderijo, mas hoje é lá. Confirmei com um gesto de cabeça, ela foi para cozinha e fechou a porta. Ge me conhece, sabe que eu me arranjo sem. Angoleiro, angoleiro, nem grilo nem galo angoleiro, hora do mistério, Rua do pó, não tem valente nesse silêncio.
Sussurram entre si os estranhos. Mineiro, um conhecido que conseguiu envelhecer aqui, obedece a regra e arreda enquanto é tempo. É a hora da sombra, quem sabe não espera angoleiro. Não tem molejo nem mandinga pra matraca, é o ditado. Sem B.O. no caminho, mas é certo que vieram cumprir um serviço, com jeito de encomenda. Expectador é arquivo morto. Dialogava comigo mesmo, lembrando de Ge na cozinha e do saco de feijão ao alcance da minha mão. Joga ligeiro no escuro, amanhã sorri na roda, malícia, e vê o que amiúda. Não, ainda carrego, apesar do tempo, um senso solidário sem sentido.
O gosto do conhaque de segunda se acentua de repente, o melhor sabor que um homem poderia experimentar, talvez o último. Já saímos de outras angoleiro, na calma. Hoje, Mais cabeça que coragem, na avaliação da roda não há medo, só mais uma história. Aqui, o bicho pega.
Angoleiro olha o mistério, olha geral. No canto, ao lado da porta do depósito tem espaço, são uns três metros de altura para o outro lado. Antes de poder entender direito a lambança que estava se armando, vejo o Mineiro que tinha saído. Aparece e para na esquina, longe, miudinho debaixo das sombras. Trouxe outros com ele, muitos. Os estranhos já perderam a expressão sanguinária que tinham ao chegar, não estão mais tão seguros de sair ilesos, não sairiam mais. Entraram seis, sangue nos olhos, sem margem a nenhuma reação. Duas empunhadas e destravadas. Fora tem outros da bocada, vieram defender a área, ninguém mais dá uma piscada sem ter de explicar.
Turú, o cabeça, bate nas minhas costas e pergunta se está tudo em cima, respondo que sim. Pergunta por Gê, ela aparece de repente, com um terço enrolado na mão. Pega a caixa de fichas e deixa em cima do balcão, apanha as garrafas enquanto eles escolhem os tacos e ajeitam as bolas, um deles deixa o seu ferro disposto na beirada da mesa. O clima é tão tenso e perigoso que um sujeito mais mole poderia se molhar, só de susto.
O sabor nobre do meu conhaque vagabundo parece ter passado para o do estranho, que o vira de uma vez, com muito cuidado pra não fazer movimentos bruscos, conhece a noite. Os três estão juntos agora, no canto do fundo, perto da porta do depósito. Cochicham algo de vez em quando, não demonstram medo, mas não ousam falar mais alto e nem tentam sair fora, seria a pior opção nessa hora. Sobre a laje, do outro lado tem outros, só vejo os vultos se movimentando de um lado para o outro na escuridão, fumando. Os estranhos também já os viram, não tem mais por onde.
Turú segurava o taco com as duas mãos, apoiado no chão, comentou em voz alta sem me olhar: _ Angoleiro, angoleiro, velho mestre, é hora de jogar, mas na minha regra angoleiro._ Não me lembro de ter visto esse garoto sorrindo nunca. Desde pequeno carrega amargura estampada na face. Tem mais malícia e provocação nos olhos do que todos os outros juntos. Nunca o vi distraído, pasmando, vê de longe os que chegam e os que saem. É preciso muita maldade pra tornam um homem nisso, mas o bicho é forte, destemido e comedido, ou não segurava essa onda.
Ele para o jogo de um momento para outro, olha para os estranhos e diz em tom calmo e firme:
_De costas, os três. Dispensa no chão bem devagar. Vocês vão viver mais um dia, vão levar o meu recado pra ele. Ela não está refém de ninguém, veio de livre e espontânea vontade e vai ficar. Digam que hoje foi o seu último dia de sorte e o de vocês também. Ele sabe pra onde os mandou, vocês não tem caras de bobos, então custou muito caro, mas ela vale mais que isso. Estão na minha lista, se eu ver um dos três do lado de cá da ponte de novo, não volta.
O meu conhaque vagabundo voltou a ter o sabor maravilhoso de conhaque vagabundo. Eu e Gê nos compreendíamos com arremedos de sorrisos pelos cantos da boca, o alívio que sentíamos era doer os músculos. Ela colocou um reforçado para mim e outro para ela. Olhava-me com seus velhos olhos brilhantes, marejados, uma dose moderada de felicidade, de quem vai viver hoje, ainda.
Amanhã...

Um comentário:

Raiblue disse...

Bravo,René!
Maravilhoso conto!

Uma narrativa que impressiona de tão bem construída....tão poética e tão misteriosa...me envolveu completamente no silêncio da noite...nas sombras do mistério..Imaginei o olhar da Ge... e sua cumplicidade c o angoleiro...querendo entender o mistério naquele saco de feijão..até q saquei...
Que clima tenso vc criou...fiquei nervosa,até que Turú,surpreendentemente enfrentou
o perigo e liberou o caminho p Ge e o angoleiro,ao menos por uma noite...talvez...

Muito bom,René,parabéns,querido!!
grande beijo azull....anis...docinho...
Blue