quinta-feira, 24 de julho de 2008

Conversa Vultuosa



Uns vultos arrojados à parede desassombrada pela fraca lâmpada desde um poste perfilavam alarmantes figuras. Pareciam quase tão ameaçadores quanto a conversa meio gritada, meio fanfarrona entre as pessoas de quem as sombras eram arrancadas pelo bruxuleio da lâmpada pendida do alto.

O vento assoviava no frio gelado do início da noite. Estanquei à janela que fechava à umidade e à friagem, querendo ajudar a esquentar um pouco o pequeno quarto em que mesmo a mata-junta da madeira parecia tiritar frente àquela inusitada baixísima temperatura de outono, próxima a zero grau.

- Eu não vou trabalhar um mês inteiro, oito horas por dia, mais extra no sábado pra tirar seiscentos paus. Isso não é vida. Isso é osso, carne de pescoço, escravidão até.

- É, mas como tu vai descolar grana pra fazer o tudo que tu queres?

A sombra mais alta agitava nervosa na ponta de um dos braços um 38 de cano longo e acompanhava, como um maestro regendo uma orquestra, a fala que lhe dava sentido espetaculoso: ora, com o ferro. Numa noite eu arranco uns trezentos na mão grande e completo a outra metade passando coisa, xará!
A sombra menor pareceu recuar um passo, medindo da outra a fala e abrindo a ela o espaço que a imponência do tom e do conteúdo estava exigindo. E, tão intrigado quanto eu, perguntou: sim, e se responde bala do lado de lá, que qui tu faz?

- Eu me garanto, ô mané, não tenho mais só 12 anos feito tu, já fiz 14, não sou mais criança ô perrengue!

Quando se afastaram dali, os dois meninos me avistaram à janela e sacudiram as cabeças em cumprimento, que respondei também com um meneio ligeiro, cortês, mas sem entusiasmo. O que mancava sorriu um tanto amarelo, um tanto escapista, o outro desviou o olhar duro muito rápido.

Sob a lâmpada, as sombras tornaram-se miúdas, comuns. O discurso, no entanto, não me pareceu mais fantasia vultuosa, ficara grudado na memória como aquelas sombras fanfarronas na parede.

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