Passava da meia-noite.
A mulher estava acotovelada ao peitoril da janela, olhos sobre a campina distante, iluminada pelo plenilúnio.
-Vem dormir, mulher...
o ritmo na zona rural levava os camponeses bem cedo à cama. Mas a esposa parecia não ter sono. E ficava até altas horas enamorando a eremia dos pastos desertos.
Num momento, viu uma procissão. Vinha, silenciosa, através do carreiro entre os cafezais, desde o capoeirão virgem do vale que se abria bem nas divisas da grande fazenda.
A mulher ainda chamou o esposo, entusiasmada ante o préstito que vinha, lentamente, velas em riste, frontes abaixadas e encobertas pelos capuzes alvos. O homem não respondeu. Talvez já mergulhara no sono.
Que belo cortejo! - ela pensou, suspirando fundo, saboreando os passos ritmados daqueles corpos vagarosos, agora já quase à sua janela, seguindo a estrada que sumia-se nas divisas da próxima herdade.
Não ouviu um rumor seguer, não detectou um rastro na areia da estrada. Assim a procissão passou, comportada, aos olhos muito vivos da mulher madrugadeira.
Um dos últimos fiéis desprendeu-se do préstito, chegou junto à janela, estendeu a vela à mulher:
-Coloca-a no teu oratório.
Não pôde distinguir os olhos e os traços do seu interlocutor. Um estranho arrepio percorreu-lhe todo o dorso.
Fechou a janela, inexplicavelmente trêmula e um tanto sonolenta. Colocou a vela no oratório. E deitou-se.
Um sono agitado. Sonhou com sombras vaporosas, esquifes entreabertos, necrópoles inçadas de cruzes e capelas gemebundas.
No outro dia, à abrução matinal, foi até ao oratório. E viu, estarrecida, um formidável osso, pontiagudo, esguio, tal qual uma vela, espetado na cera derretida do pequeno castiçal, exatamente onde deixara a vela na véspera.
O refrescar-se à janela às altas horas agora tornou-se um tabu. Ela nunca o violou.
E como invariavelmente ocorre nas experiências místicas da gente do campo, nunca pôde atinar o que sucedera. Imperdoavelmente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário