sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

HÁRPIAS- A DISPUTA DAS FÚRIAS- Giselle Sato


AS FÚRIAS

As irmãs estavam reunidas. Temidas, odiadas, retratadas em mármore precioso e telas
de incalculável valor:

Aelo, porte e altivez. Tudo em sua figura esguia em perfeita sintonia com a moda atual.
Poder e magnetismo nos mínimos gestos. A voz embriagante escondia a manipulação
em todos os graus e sentidos. Trazia o inseparável gato Enigma, o intragável guardião.

Ocípite , a menina de olhos sonhadores e frescor cheio de promessas. Musa sempre
cercada de poetas e artistas. Cativante, amante da música e Belas Artes. Devaneios e
precipícios são irresistíveis convites aos jovens Ícaros, iludidos e impetuosos
.
Celeno a sombria. Veludo italiano e renda francesa compunham o visual gótico
sofisticado. Botas de couro altíssimas, tatuagens e piercings de brilhante. Se a noite
tivesse uma rainha, definitivamente seria Celeno, a mais obscura e cruel das irmãs. O
lobo negro deitado aos pés da dona resmungava, vigiando o gato de Aelo.

O casarão em algum ponto perdido no vale das almas, construído com ossos e lágrimas
dos eternos escravos, estava iluminado. O piso de pedras escuras refletia o fogo da
imensa lareira, poltronas de couro espalhadas pelo salão.

O aparador repleto de bebidas exóticas e taças de cristal. Se não fosse a ausência de
janelas o lugar pareceria com qualquer castelo europeu muito antigo e conservado.
Aelo bebericava absinto acariciando Enigma:- Podemos começar nossa reunião.

Levantaram-se em profunda reverência e entoaram as Palavras:- Por Gaia e Urano, as
filhas, de Thaumas e Elektra evocam a Tradição e os antigos sábios em mais um embate.

O grande salão exibia tênues sombras esgueirando-se pelos cantos. Ocultas na escuridão, antigas formas, entoavam encantos de proteção, em linguagem milenares:

-Sim, podemos iniciar. Hoje decidiremos, quem conduzirá a alma negra que todas
desejamos.

-Posso abrir mão queridas irmãs, tudo é negociável- Ocípide riu-se, deliciada.

As três Fúrias sem a capa da polidez mediam forças. A sina maldita era o convívio
eterno. Lentamente os traços humanos deram lugar as verdadeiras faces das Harpias.

O homem em questão era um poderoso líder político e espiritual responsável por
milhões de mortes no Oriente. Ganancioso, inescrupuloso, sem um pingo de caráter ou
moral.

Ocípite movimentava-se, brandindo os longos braços como se fossem asas. Volteios
exagerados, narrando as terríveis cenas que aconteciam naquele instante:- Bombas
explodem cidades, meninas mães choram os filhos e homens caem aos pedaços. Montanhas de corpos no deserto, ódio, sangue e medo. Desespero nos olhos dos soldados. Inexperientes...

- Pare com isso, poupe-nos de seu teatro. Já partilhamos tudo. Sabemos que o caos é
engolido, com sofreguidão pelas trevas. Disputado, incentivado, gerido como um filho
mal parido.

-Tamanha sordidez, supera os tempos mais remotos, quando a bestialidade e a
ignorância se confundiam.Precisamos nos apressar...

Aelo e as irmãs, caminharam para o terraço. Debruçadas no parapeito, apreciavam a
paisagem árida em tons vibrantes. Do vermelho fogo, ardendo em fendas e gargantas
alimentadas, permanentemente com o magma. A dor e o suplício da Terra.

No mais profundo dos abismos o ar irrespirável confundia-se com o frio gelado das
almas perdidas. A constante mudança de temperatura, assim como, a chuva ácida eram
detalhes do mundo criado pelas criaturas.

O ar quente chegava em lufadas fortes com a mesma intensidade das tempestades:-
Vejam que quase confundo este inferno, com o campo de batalha terreno.

- Algumas vezes, penso que eles vão nos superar, na destruição da grande
Obra.

-Muito bem, não chegamos a acordo algum. Em poucas horas, ele terminará o ciclo e
uma de nós fará as honras.


A outra irmã não prestou atenção, tinha o costume de ser imparcial em todas as
decisões: - Ossípede, não vai opinar, como sempre.

- Aelo sempre quer arrebanhar o máximo. Já não te bastam as guerras? Centenas de milhares de mortes diárias.

- Sim, sou gananciosa. O que nos rendeu um aumento considerável de almas. Viver na América, tem diversas vantagens. Devo lembrar que a escolha dos continentes, foi uma decisão conjunta?

- Mas não estou arrependida, incentivar a eterna guerra Santa, é um prazer. As disputas, retaliações, embates eternos que nunca terão fim. Apenas penso que por direito, ele me pertence...

- Ossípede! Fora o presidente, que deseja governar o mundo,em que tem trabalhado?- Aelo, tentava ganhar tempo.

- O Brasil, está cada dia pior e mais perdido. Guerras urbanas, tráfico e miséria . Além do mais, apontam o Brasil, como o grande celeiro do mundo. No futuro, o mundo disputará cada pedacinho. O povo deixará de ser tão pacífico.

Um tremor suave anunciou a chegada do Senhor dos Submundos. As fúrias agitaram-se
em mesuras e boas-vindas:- Minhas queridas, estão aprontando novamente?- o cheiro forte de enxofre, marca registrada.

- Senhor. Íamos pedir sua inestimável ajuda.

- Acredito. A resposta é não. Regras claras, ele falhou e morrerá na forca. Aelo, isto é uma ordem, as eleições não tardam. A história terá o primeiro presidente negro. Isto sim. É importante!

- Mas Sahan é uma lenda. O mistério que incita os delírios terroristas.

- Mentiras. Nada me diverte mais que assistir estes pequenos embates. Quase não
preciso interceder...Humanos!

- Como queira mestre, acataremos suas ordens- Aelo, a eterna diplomata, assentiu em nome de todas.

- Ocípede, minha garotinha deliciosa, concentre-se. O ouro negro é o pomo da disputa. Incite as lutas pelas terras, desfaça acordos...Intrigas ainda funcionam nos dias atuais. Os cartéis estão indo muito bem. O vício cada dia mais forte e incontrolável.

Caminhou até a figura altiva e visivelmente contrariada. Tocou a face pálida, desfez o
penteado, soltando as fivelas de ouro. Os cachos caíram em ondas perfumadas.
Delicadamente aspirou, sussurrando : - Linda Celeno! Minha favorita. Vou conceder esta honra, em nome da nossa velha amizade. Estarei vigiando, naturalmente...

- Perdi sua confiança meu senhor?

- Nunca a teve! Cuidado! Reunião terminada. Porque está tão admirada com meu terno Armani? Sou um empresário e vou a uma reunião importante. Roma. Ciao meninas.

As Fúrias emitiram um rosnado assustador. Celeno, saboreando o momento de triunfo, emitia risadas agudas, de puro escárnio.

Não se despediram. Cada qual tomou seu rumo. Eram os arautos da discórdia e
miséria. Da fome, dor e desesperança. Adaptadas aos tempos modernos. Existiam.




Foto- Ricardo Pozzo

Nenhum comentário: