segunda-feira, 14 de setembro de 2009

LICANTROPUS

(Darkness)

Indiferente ao caudal liquido que desaba, a sacerdotisa mantém-se concentrada em seu mister. O ritual tem por objetivo a invocação da proteção da Deusa. Os últimos acontecimentos haviam dizimado os seguidores da Grande Mãe. Seu coração confrangido roga pela ação direta de sua protetora:
-- Oh, Grande Mãe Protetora daqueles que seguem sua orientação, olha pelo povo que sofre sob o julgo ferrenho dos asseclas das trevas.
Um estrondoso trovão, seguido pelo fagulhar de um relâmpago incandescente, arrebata-a do tempo e do espaço impelindo-a a uma viagem singular. Seu corpo desloca-se suavemente sobre planos difusos. O aparente caos representa a celeridade de sua viagem.
Depois de um tempo imensurável, o movimento é contido e seus olhos divisam a silhueta diáfana de uma senhora majestosa. Seu manto monocromático reflete nuances espectrais das mais variadas combinações de cores.
-- Grande Mãe! Exclama jogando-se de joelhos diante da imponente figura.
Toda angústia que a dominava esvai-se num átimo. Invadida pela força do olhar daquela a quem reverencia, sente suas dores serem drenadas de seu âmago. Uma paz como jamais havia sentido preenche seu íntimo.
Nenhum som fendeu o silêncio canoro que dominava o ambiente. A harmônica sutileza da comunicação se processava na alma, as palavras não tinham lugar naquele encontro especial. A sacerdotisa pressentiu a grandeza do momento e recolheu-se a sua pequenez humana.
Assim que a absorvente visão cessou, ela ultimou as fases do rito. Concluído seu mister, deixou o abençoado recanto dirigindo-se para o centro do pequeno povoado que lhe servia de morada.
Encravado no coração da floresta, aquele era o último reduto onde poderiam considerar-se a salvo da sanha ambiciosa dos senhores da terra. Todo vigor e serenidade, percebidos na majestosa figura etérea, revestiam seu frágil corpo. Seus olhos resplandeciam o brilho de um fogo imaterial.
Todos que cruzaram seu caminho foram tocados pela força que emanava de seu corpo. Utilizando o magnetismo de seu olhar, ela os convocou para um encontro no centro do povoado. Eles precisavam preparar-se para o embate que se avizinhava.
-- Meus filhos, nossa Grande Mãe se revelou a mim. Fui levada a sua morada e pude contemplar aquilo que nos aguarda.
Olhares atenciosos não desgrudavam um segundo sequer da figura rutilante da sacerdotisa. Desde há muito, eles sabiam que podiam confiar nas determinações que a mulher lhes dava. Jamais haviam sofrido revés algum por seguirem as determinações da guia.
-- Muitos de vocês acreditam que o mal se origina no coração do Senhor dos Infernos e se manifesta através de seus demônios, mas está na hora de saberem que nem sempre é assim. O homem tem se esmerado na tentativa de se igualar ao tenebroso. Nossos irmãos sofrem não pela ação de demônios sanguinários, mas pela ambição desenfreada de homens que não se importam em perpetrarem as mais ignóbeis crueldades para alcançarem seus objetivos.
Exclamações elevaram-se por todo os cantos. O desassossego reinante parecia preste a convergir para um desastre real. Os adultos tentavam acalmar seus jovens, mas não estavam obtendo sucesso uma vez que eles próprios não conseguiam manter seus corações serenos.
-- Vamos perecer? Soou a indagação trêmula do líder local.
-- Vivemos os últimos estertores de nossas existências. A visão que me foi concedida mostrou o lugar para onde deveremos ir quando a hora soar.
-- Não tem como evitar?
-- Uma grande fera foi despertada por aqueles que ambicionam nosso solo. Há seis solstícios ela vem reunindo um número considerável de asseclas. Não temos chance de fazer frente a sua investida.
-- Mas a Deusa não pode nos proteger?
-- Durante milênios nosso povo recebeu a proteção incondicional de nossa Grande Mãe, mas nosso tempo é finito. Outros tempos estão nascendo e não temos lugar na nova ordem.
-- Nossos filhos são tão pequenos! Lamentou um dos presentes.
-- Todos que permanecerem fieis a Deusa serão recebidos em sua morada.
-- Que tipo de fera nos ameaça? Um outro quis saber.
-- Muitos uivos precederão a chegada da matilha.
-- Lobos! Exclamou o mesmo que perguntara a respeito da identidade da fera.
-- Os lobos jamais nos causaram mal algum, assim como também não lhes causamos quaisquer infortúnios. A fera que foi despertada é de uma espécie única. Nem homem nem lobo, uma fusão entre ambos.
-- Quanto tempo temos? A pergunta do líder foi feita em tom resignado.
-- Antes que a décima lua cubra a terra com seu brilho argênteo, teremos deixado este plano.
-- Tão próximo!
-- Aproveitem o tempo que nos foi concedido para libertarem-se de seus pendores, medos e vícios. Os laços existentes só se manterão se não olvidarem as orientações recebidas através de nossos antepassados. Agora vão e procurem fazer o melhor que conseguirem.

Nenhum comentário: