sexta-feira, 5 de março de 2010

Apeiron


Nesse lugar o rio do tempo corre em espiral.
Esse rio bifurca em braços. De longe, pode-se às vezes ver os antepassados: ao cometermos os mesmos caminhos, escolhermos sempre os mesmos lados da bifurcação, tornamos o laço da espiral mais apertado.
E quando duas épocas roçam levemente uma na outra, sentimos a perturbação no ar, a explosão de silêncio e o tremor de estrelas longíquas se reorganizando.

Então corremos aos espelhos e lá estão eles: parecidos conosco, o mesmo olhar. Degenerados do que somos, pessoas que não seremos mais nem daqui há milhões de anos.

Do outro lado dos buracos negros, de onde jorram astros lá capturados e esmagados na singularidade.
Aqui onde renascem novos universos. É onde moro.

Foi numa dessas vezes que, procurando o espelho, rasguei o tênue deste lado, onde ainda não sabia nada. E me vi olhando o banco da praça da cidade há muito destruída. Eu lá não estava ainda.

Ele, ainda menino, estava perto. Lá estava também um eu de outra época, olhando de uma outra fenda aberta. Coisa muito rara de acontecer.
Dei de cara com meus olhos. Aqueles olhos sim, já sabiam. Aquelas mãos, sim, já sabiam o que fazer. Cabia-lhes aproveitar a chance.

Da fenda veio o grito não ouvido, e me vi entrando por ela. Havia algo atrás de mim: era o medo de não conseguir voltar.
Gritei, tentei falar comigo, com ele, dentro daquela bolha de tempo que havia se formado ao redor, dissuadir-me de que tudo fora coincidência, de que se eu fizesse o que estava para fazer, a Grande Noite cairia sobre todos durante tanto tempo que esqueceríamos o perdão.

- Vou cometer um equívoco, gritei.

- Não. Quero ver minha filha mais uma vez, respondi.

Não me ouvi mais: apertei a garganta do menino até sentir sua falta de vida, até ver sua urina no chão e seus olhos negros completamente dilatados.
Larguei-o no chão do parque, olhei para mim novamente, e sorri, olhando meu eu que continuava na escuridão que não evitara, e voltei para a escuridão que causara, enquanto ele adulto sumia na névoa para não mais.

Desfitei o espelho e li mais uma vez a inscrição antiga:
"Onde estiver a origem do que é, aí também deve estar o seu fim, segundo o decreto do Destino. Porque as coisas tem que pagar umas as outras, castigo, e pena conforme a sentença do Tempo" Anaximandro de Mileto.

Minha filha vive e me culpa pela morte de seu grande amor e algoz. Não tenho netos e a Grande Noite durará ainda algumas Eras. Mas ela está viva, é o que importa.

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