sábado, 14 de agosto de 2010

À NOITE

Os gritos de horror ainda retinem em meus ouvidos nas noites frias e solitárias desta natureza completamente morta e destroçada. Embora não esteja mais certo do tempo que se passou desde que a tragédia se desenrolou, ainda sou capaz de recordar cada cena daqueles pavorosos acontecimentos. Tudo foi tão dantesco que as marcas gravadas no âmago não se diluem ou arrefecem. A lua, tingida pelo rubro do sangue subtraído à humanidade, acompanhou o deflagrar da atrocidade.
As vozes do além ainda retumbam com estardalhaço. Ouço-as sempre que a noite se mostra incipiente. Após os gritos de horror, elas se levantam acusatórias. Não existem fantasmas ou juizes, sei que é apenas efeito de minha consciência, mas elas não se calam; deleitam-se em me atormentar acompanhando-me por toda minha maldita eternidade.
O desejo de poder emudecer, a revolta de minhas vítimas, não pode ser satisfeito. Vago, perdido e solitário, sabendo que jamais as farei calar. Os anos se acumularam sobre meus ombros e ainda assim eu as ouço, eu os desperto sempre que minha sede se manifesta, sempre que minha sina sepulta a razão e o animal domina meu âmago.
O antigo orgulho de sentir-se imortal há muito se desfez em uma nuvem difusa. A imortalidade é um peso que subjuga o desejo de continuar existindo, ela é como uma prisão inexorável asfixiante e cruel. Aqueles que gritam e acusam não sabem o quanto são mais afortunados do que aquele que os vitimou. As sombras acolhem meus passos, mas a lua insiste em me revelar ao mundo.
Agora que já não desejo mais a imortalidade, ela se mostra intransponível. Outrora eu possuía adversários a altura, almas fleumáticas que não mediam esforços em sua caçada, mas hoje os homens preocupam-se mais com a mesmice de suas rotinas, eles não têm mais tempo para mitos construídos sobre verdades que eles não são capazes de abarcar.
Lampejos dardejantes antecipam o pranto singular da abóbada celeste. Mais uma noite chuvosa, mais uma vez sentirei a insensibilidade maldita que me mantém impermeável às manifestações simples da vida. O caudal líquido não me desperta sensação alguma, estendo minhas mãos, aparo um punhado de água, mas não sinto sua frieza. Eu não pertenço mais a este mundo, não possuo mais as capacitações necessárias para assimilar as nuances materiais.
A tempestade afugenta os transeuntes. As ruas estão desertas, ou quase. Alguns desavisados ou deserdados pela sorte perambulam sem perceberem que a morte os vigia, silenciosa. O fogo arde em minhas entranhas. Já faz um longo tempo que negligencio minha sede; esta noite a necessidade suplanta o desejo ignorar minha natureza.
O sobrevôo é como uma benção. Não fosse pela motivação, eu me sentiria livre. Minhas asas não se umedecem com a precipitação aquosa, posso seguir sem me preocupar, sem ser notado. Sou como uma sombra imperceptível, um nada que se materializa apenas quando a vítima já não pode mais reagir.
Maldita era tecnológica! O homem se intoxica com produtos sintéticos e outras drogas mais alterando a consistência, o sabor, a pureza do sangue. Os buquês já não são tão apreciáveis; sangue ruim. Mas é melhor uma taça amarga do que nenhuma.


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