sexta-feira, 17 de agosto de 2012

ENTRE IRMÃOS


O vento assolava a região incrementando o frio que a dominava, mas a tétrica figura que caminhava sob sua manifestação não parecia incomodar-se com os açoites que seu corpo sofria. Nem mesmo os andrajos que o cobriam, levantados com fúria pela intrepidez eólica, chegavam a causar-lhe reação. Seus passos eram firmes.

As gigantescas árvores que compunham a paisagem que o acolhia mostravam-se hirtas com aparência de uma morte irreversível, mas ele sabia que era apenas mais uma ocorrência comum à estação invernal; não que estivesse se importando com isso.

Repentinamente ele deteve seu caminhar, membro superior oculto pelo capuz, rodou sobre o corpo como se procurasse por algo ou alguém. Fosse pressentimento ou acuidade auditiva, o certo é que não demorou a que sons estrondosos de tropel ganhassem o ar. Sem se abalar ele projetou-se para o galho de uma das árvores procurando ocultar-se em seus braços ressequidos.

-- Vamos! Ele não pode estar longe. Bradou um enfurecido cavaleiro.

Seis robustos cavalos montados por seus equipados cavaleiros passaram sob a árvore onde o andarilho havia se empoleirado. Ainda tivesse capacidade para tanto, ele sorriria, afinal eles estavam desempenhando o papel que lhes cabia. O que eles não sabiam é que estavam sendo manipulados por forças além da compreensão mundana.

Despistados seus perseguidores, o andarilho retomou sua caminhada, mas desta feita a direção foi outra. Como se estivesse sendo transportado pelo vento, seguia mais célere do que o normal para alguém com sua aparência. Olhando mais detidamente seu deslocamento, tinha-se a impressão de que ele planava sobre o caminho.

No mesmo tempo em que o vento demora para cruzar o espaço entre duas montanhas, ele chegou ao seu destino; um grande, mas rústico castelo encravado em um vale destituído de vegetação mais viçosa.

No interior da hermética construção alguns notívagos ainda perambulavam por seus corredores. O frio havia intimado ao recolhimento prematuro, mas os teimosos não se importavam em receber o abraço gélido da estação. Fosse porque transitavam entre a alcova da amante e seus aposentos, ou vagavam insones e solitários, ou mesmo executando a tarefa que lhes cabiam, aqueles que não haviam se entregue aos braços de um sono profundo, agora enfrentavam os dissabores que envolviam uma noite fria.

-- Quando vai abandonar essa vida de pândego? Perguntou um homem com ar autoritário, mas que estava tão bêbado que sua postura passava uma noção burlesca ao invés de respeitável.

-- Nunca! Para que desperdiçar meu vigor com apenas uma cadela quando posso ter todas? Aquele que respondeu mostrava-se tão embriagado quanto seu interlocutor.

-- Mas vai precisar de uma vadia oficial, afinal o reino precisa de um herdeiro.

-- Já tenho bastardos suficientes para brigarem pelo trono.

-- Bastardos não contam, tem que ser um filho legítimo.

-- Então que seja a vaca da sua irmã.

O comentário deveria ter ofendido o ouvinte, mas este mostrou-se pouco tocado pela ousadia do companheiro. Seu rosto manteve a mesma passividade com que estava até então. Talvez o álcool o inibisse ou então o fato daquele que lhe falava ser seu rei.

-- Não pode desposar minha irmã.

-- Por que não?

-- Ela já é casada.

-- Pior para seu cunhado, vai ter que se encontrar com o inferno mais cedo do que imagina.

A zombaria prolongou-se por mais alguns minutos, mas o efeito da bebida cobrava seu preço. Menos resistente do que seu rei, o cavaleiro quedou sobre a superfície da mesa.

Olhar parvo, o rei não se importou com a atitude desrespeitosa de seu vassalo. Chegou a esboçar um sorriso, mas o frio que penetrou o ambiente o impediu de manifestar qualquer emoção de agrado. Com raiva berrou pelo servo responsável pela manutenção do calor.

-- Fogareiro! Maldito imprestável!

-- Não é por falta de fogo que está sentindo frio.

-- O que? Quem é você?

A visão obscurecida pela bebida impediu o rei de identificar aquele que lhe dirigia a palavra.

-- Tão senhor de si, tão arrogante...

Desta vez a voz soou soturna. O rei sentiu como se o frio que o incomodava partisse da boca do estranho.

-- Como entrou aqui?

-- Paredes não podem me deter.

-- O que você é, um fantasma?

-- Graças a você.

-- Graças a mim? A bebedeira concedeu ao rei o benefício da ironia. Que seja, já mandei muitos desgraçados para o inferno.

-- Está na hora de você visitá-los.

-- Não! Guardas!

Atingido pelo choque da realidade, o rei levantou-se num único movimento. O estado ébrio o fez cair sobre a cadeira que não suportando o movimento caiu fazendo com que o rei tombasse ao solo.

-- E pensar que não precisava de nada disso...

-- O que sabe sobre minhas necessidades?

-- Sei muito sobre você.

-- Quem é você, afinal?

-- Olhe-me!

A ordem imperiosa não admitia recusa ou replica. Levantando-se aos trancos e apoiado na mesa, o rei obedeceu o estranho. Assim que fixou seu olhar sobre o encapuzado, dobrou-se e bradou:

-- Não! Você está morto!

-- Estou.

Ao mesmo tempo em que confirmava a sentença do rei, o estranho deixava sua destra a mostra. Os ossos esbranquiçados luziram ao sabor das tochas que mantinham a parca iluminação da sala.

-- Não vai roubar aquilo que é meu!

-- Oh, não, foi você quem roubou aquilo que me pertencia por direito de primogenitura.

-- Você disse que não deseja a coroa.

-- E eu falava a verdade. Não precisava ter tramado minha morte. A coroa seria sua e eu seguiria meu caminho em paz.

-- Estúpido! Acha mesmo que eu acredito em você? Não acreditei enquanto estava vivo muito menos agora que morreu.

-- Pouco me importa em que você acredita. Dentro em breve você conhecerá o mesmo destino que me toca.

-- Você não pode nada, está morto!

-- Vai descobrir que morrer não é o fim. Há muito mais esperando por aqueles que deixam o mundo dos vivos.

-- Não! Estou bêbado, é tudo invenção da minha cabeça.

-- Se for, não tem porque se preocupar. Mas se não for...

Para provar que estava ali, o estranho aproximou-se do rei tocando-lhe a face. O choque foi tão grande que o rei voltou a cair. No local em que a destra tocou sua face, surgiu uma mancha escura e ardente.

-- Aiiiiiiii, com o que me tocou, seu animal imundo! Gritou o rei consumido pela dor.

-- Com minha mão.

-- Mentira! Você me queimou!

-- Ainda nem comecei a puni-lo.

-- Guardas!

-- Pode berrar, eles não virão.

-- Serão executados!

-- Por quem? Não estará mais aqui para ordenar que outros inocentes sofram os abusos que vem praticando.

-- Eu sou o rei, eu posso tudo!

-- Não, você é um tirano, e tiranos merecem o inferno!

-- Se não posso contar com a proteção de meus guardas, eu mesmo me defenderei. Você nunca foi um grande guerreiro.

-- Está enganado. O fato de não apreciar a arte da guerra não quer dizer que eu não a praticasse.

-- Venha, vamos ver quem pode mais!

O assombro diante do inusitado e o temor de ter sua vida ceifada fez a mente do rei recuperar sua sobriedade. Sem esperar pela resposta do estranho, desembainhou a espada e partiu para o ataque.

A lâmina traspassou o corpo do estranho sem lhe causar mal algum. O rei voltou a golpear seu oponente insistentemente, mas não conseguiu resultado algum. Dominado pelo medo, acercou-se do companheiro que se mantinha desmaiado sobre a mesa incitando-o à batalha.

-- Vamos, imprestável, ajude-me a acabar com esse maldito!

-- O que?

A reação do embriagado homem foi tão lenta que o estranho não precisou de muito esforço para colocá-lo fora de combate. Como por encanto uma luminosa espada surgiu entre as falanges descarnadas de sua destra penetrando o  crânio do inimigo a partir da mandíbula até sair pela parte de cima. A morte foi instantânea.

O sangue banhou os ossos do estranho, mas não chegou a tingir-lhe a ossada, assim como a espada do rei o havia traspassado sem nenhum dano, o sangue perdeu-se sobre a mesa e o chão.

-- Agora você!

-- Não! Espere, você é... era... foi... meu irmão...

-- Tarde demais para apelas para o sangue.

-- Eu fui mal orientado...

-- Não, você foi mal intencionado. Jamais ouviu alguém, sempre fez aquilo que lhe aprazia.

-- Mas eu não podia...

-- Chega!

A espada cindiu o ar com rapidez estonteante. O rei não teve tempo nem mesmo para esboçar um esgar de pavor. Seus olhos esbugalhados receberam o contato gélido e fatal do gládio. A parte superior do crânio foi separado do restante do corpo. A intenção do estranho era degolá-lo, mas seu movimento foi muito acima da posição em que o rei estava.

-- Reine no inferno, irmão!

Assim que o dia raiasse e os acastelados entrassem na sala a procura de seu rei, seriam brindados com a cena mais horripilante que se poderia encontrar; dois corpos sem vida e degolados estavam jogados ao chão e duas cabeças, sendo que uma estava separada em duas metades, traspassadas por espadas mantendo-as pregadas à superfície da mesa.

Não tendo mais nada a perpetrar naquela local, o estranho cadavérico sumiu como fumaça soprada pelo vento. De repente todo calor absorvido do ambiente retornou; a morte já não estava mais presente no castelo.

Nenhum comentário: