O vento
assolava a região incrementando o frio que a dominava, mas a tétrica figura que
caminhava sob sua manifestação não parecia incomodar-se com os açoites que seu
corpo sofria. Nem mesmo os andrajos que o cobriam, levantados com fúria pela
intrepidez eólica, chegavam a causar-lhe reação. Seus passos eram firmes.
As gigantescas
árvores que compunham a paisagem que o acolhia mostravam-se hirtas com
aparência de uma morte irreversível, mas ele sabia que era apenas mais uma
ocorrência comum à estação invernal; não que estivesse se importando com isso.
Repentinamente
ele deteve seu caminhar, membro superior oculto pelo capuz, rodou sobre o corpo
como se procurasse por algo ou alguém. Fosse pressentimento ou acuidade
auditiva, o certo é que não demorou a que sons estrondosos de tropel ganhassem
o ar. Sem se abalar ele projetou-se para o galho de uma das árvores procurando
ocultar-se em seus braços ressequidos.
-- Vamos! Ele
não pode estar longe. Bradou um enfurecido cavaleiro.
Seis robustos
cavalos montados por seus equipados cavaleiros passaram sob a árvore onde o
andarilho havia se empoleirado. Ainda tivesse capacidade para tanto, ele
sorriria, afinal eles estavam desempenhando o papel que lhes cabia. O que eles
não sabiam é que estavam sendo manipulados por forças além da compreensão
mundana.
Despistados
seus perseguidores, o andarilho retomou sua caminhada, mas desta feita a
direção foi outra. Como se estivesse sendo transportado pelo vento, seguia mais
célere do que o normal para alguém com sua aparência. Olhando mais detidamente
seu deslocamento, tinha-se a impressão de que ele planava sobre o caminho.
No mesmo tempo
em que o vento demora para cruzar o espaço entre duas montanhas, ele chegou ao
seu destino; um grande, mas rústico castelo encravado em um vale destituído de
vegetação mais viçosa.
No interior da
hermética construção alguns notívagos ainda perambulavam por seus corredores. O
frio havia intimado ao recolhimento prematuro, mas os teimosos não se
importavam em receber o abraço gélido da estação. Fosse porque transitavam
entre a alcova da amante e seus aposentos, ou vagavam insones e solitários, ou
mesmo executando a tarefa que lhes cabiam, aqueles que não haviam se entregue
aos braços de um sono profundo, agora enfrentavam os dissabores que envolviam
uma noite fria.
-- Quando vai
abandonar essa vida de pândego? Perguntou um homem com ar autoritário, mas que
estava tão bêbado que sua postura passava uma noção burlesca ao invés de
respeitável.
-- Nunca! Para
que desperdiçar meu vigor com apenas uma cadela quando posso ter todas? Aquele
que respondeu mostrava-se tão embriagado quanto seu interlocutor.
-- Mas vai
precisar de uma vadia oficial, afinal o reino precisa de um herdeiro.
-- Já tenho
bastardos suficientes para brigarem pelo trono.
-- Bastardos não
contam, tem que ser um filho legítimo.
-- Então que
seja a vaca da sua irmã.
O comentário
deveria ter ofendido o ouvinte, mas este mostrou-se pouco tocado pela ousadia
do companheiro. Seu rosto manteve a mesma passividade com que estava até então.
Talvez o álcool o inibisse ou então o fato daquele que lhe falava ser seu rei.
-- Não pode
desposar minha irmã.
-- Por que não?
-- Ela já é
casada.
-- Pior para
seu cunhado, vai ter que se encontrar com o inferno mais cedo do que imagina.
A zombaria
prolongou-se por mais alguns minutos, mas o efeito da bebida cobrava seu preço.
Menos resistente do que seu rei, o cavaleiro quedou sobre a superfície da mesa.
Olhar parvo, o
rei não se importou com a atitude desrespeitosa de seu vassalo. Chegou a
esboçar um sorriso, mas o frio que penetrou o ambiente o impediu de manifestar
qualquer emoção de agrado. Com raiva berrou pelo servo responsável pela
manutenção do calor.
-- Fogareiro!
Maldito imprestável!
-- Não é por
falta de fogo que está sentindo frio.
-- O que? Quem
é você?
A visão
obscurecida pela bebida impediu o rei de identificar aquele que lhe dirigia a
palavra.
-- Tão senhor
de si, tão arrogante...
Desta vez a voz
soou soturna. O rei sentiu como se o frio que o incomodava partisse da boca do
estranho.
-- Como entrou
aqui?
-- Paredes não
podem me deter.
-- O que você
é, um fantasma?
-- Graças a
você.
-- Graças a
mim? A bebedeira concedeu ao rei o benefício da ironia. Que seja, já mandei
muitos desgraçados para o inferno.
-- Está na hora
de você visitá-los.
-- Não! Guardas!
Atingido pelo
choque da realidade, o rei levantou-se num único movimento. O estado ébrio o
fez cair sobre a cadeira que não suportando o movimento caiu fazendo com que o
rei tombasse ao solo.
-- E pensar que
não precisava de nada disso...
-- O que sabe
sobre minhas necessidades?
-- Sei muito
sobre você.
-- Quem é você,
afinal?
-- Olhe-me!
A ordem
imperiosa não admitia recusa ou replica. Levantando-se aos trancos e apoiado na
mesa, o rei obedeceu o estranho. Assim que fixou seu olhar sobre o encapuzado,
dobrou-se e bradou:
-- Não! Você
está morto!
-- Estou.
Ao mesmo tempo
em que confirmava a sentença do rei, o estranho deixava sua destra a mostra. Os
ossos esbranquiçados luziram ao sabor das tochas que mantinham a parca
iluminação da sala.
-- Não vai roubar
aquilo que é meu!
-- Oh, não, foi
você quem roubou aquilo que me pertencia por direito de primogenitura.
-- Você disse
que não deseja a coroa.
-- E eu falava
a verdade. Não precisava ter tramado minha morte. A coroa seria sua e eu
seguiria meu caminho em paz.
-- Estúpido!
Acha mesmo que eu acredito em você? Não acreditei enquanto estava vivo muito
menos agora que morreu.
-- Pouco me
importa em que você acredita. Dentro em breve você conhecerá o mesmo destino
que me toca.
-- Você não
pode nada, está morto!
-- Vai
descobrir que morrer não é o fim. Há muito mais esperando por aqueles que
deixam o mundo dos vivos.
-- Não! Estou
bêbado, é tudo invenção da minha cabeça.
-- Se for, não
tem porque se preocupar. Mas se não for...
Para provar que
estava ali, o estranho aproximou-se do rei tocando-lhe a face. O choque foi tão
grande que o rei voltou a cair. No local em que a destra tocou sua face, surgiu
uma mancha escura e ardente.
-- Aiiiiiiii,
com o que me tocou, seu animal imundo! Gritou o rei consumido pela dor.
-- Com minha
mão.
-- Mentira!
Você me queimou!
-- Ainda nem
comecei a puni-lo.
-- Guardas!
-- Pode berrar,
eles não virão.
-- Serão
executados!
-- Por quem?
Não estará mais aqui para ordenar que outros inocentes sofram os abusos que vem
praticando.
-- Eu sou o
rei, eu posso tudo!
-- Não, você é
um tirano, e tiranos merecem o inferno!
-- Se não posso
contar com a proteção de meus guardas, eu mesmo me defenderei. Você nunca foi
um grande guerreiro.
-- Está
enganado. O fato de não apreciar a arte da guerra não quer dizer que eu não a
praticasse.
-- Venha, vamos
ver quem pode mais!
O assombro
diante do inusitado e o temor de ter sua vida ceifada fez a mente do rei
recuperar sua sobriedade. Sem esperar pela resposta do estranho, desembainhou a
espada e partiu para o ataque.
A lâmina
traspassou o corpo do estranho sem lhe causar mal algum. O rei voltou a golpear
seu oponente insistentemente, mas não conseguiu resultado algum. Dominado pelo
medo, acercou-se do companheiro que se mantinha desmaiado sobre a mesa incitando-o
à batalha.
-- Vamos,
imprestável, ajude-me a acabar com esse maldito!
-- O que?
A reação do
embriagado homem foi tão lenta que o estranho não precisou de muito esforço
para colocá-lo fora de combate. Como por encanto uma luminosa espada surgiu entre
as falanges descarnadas de sua destra penetrando o crânio do inimigo a partir da mandíbula até
sair pela parte de cima. A morte foi instantânea.
O sangue banhou
os ossos do estranho, mas não chegou a tingir-lhe a ossada, assim como a espada
do rei o havia traspassado sem nenhum dano, o sangue perdeu-se sobre a mesa e o
chão.
-- Agora você!
-- Não! Espere,
você é... era... foi... meu irmão...
-- Tarde demais
para apelas para o sangue.
-- Eu fui mal
orientado...
-- Não, você
foi mal intencionado. Jamais ouviu alguém, sempre fez aquilo que lhe aprazia.
-- Mas eu não
podia...
-- Chega!
A espada cindiu
o ar com rapidez estonteante. O rei não teve tempo nem mesmo para esboçar um
esgar de pavor. Seus olhos esbugalhados receberam o contato gélido e fatal do
gládio. A parte superior do crânio foi separado do restante do corpo. A
intenção do estranho era degolá-lo, mas seu movimento foi muito acima da
posição em que o rei estava.
-- Reine no
inferno, irmão!
Assim que o dia
raiasse e os acastelados entrassem na sala a procura de seu rei, seriam
brindados com a cena mais horripilante que se poderia encontrar; dois corpos
sem vida e degolados estavam jogados ao chão e duas cabeças, sendo que uma
estava separada em duas metades, traspassadas por espadas mantendo-as pregadas
à superfície da mesa.
Não tendo mais
nada a perpetrar naquela local, o estranho cadavérico sumiu como fumaça soprada
pelo vento. De repente todo calor absorvido do ambiente retornou; a morte já
não estava mais presente no castelo.
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