terça-feira, 27 de novembro de 2007

Lucidez enclasurada







de Guilherme Zanella


Pela primeira vez no dia, sentei. O ato consolidava toda aquela sensação de simples prazer casual. Como se bastasse como único ato válido de uma vida vazia. Não era exatamente um trono, mas mesmo uma singela cadeira de praia acomodaria sem igual meu corpo dormente. Havia andado tanto, andar é pouco. Havia corrido, isso sim. Mesmo assim, todas as janelas me indicavam perigo lá fora. Pensei inúmeras vezes em fechá-las, mas permanecia sentado por menos de um minuto. Não me parecia justo levantar. Mesmo a porta fechada sussurava ágeis ameaças. As frestas, elas mesmo, essas que são perigosas. Por elas que rastejam os perigos, os tormentos, com a vítima sempre em foco.

Temia me perder no caminho do escritório ao sofá da sala. Fazia um dia de sol, assim como a lógica me dizia. Nem mesmo o sol, muito menos as lâmpadas fluorescentes, sopravam para longe meu medo inocente. Embora o silêncio gritasse solidão, sabia que sozinho não estava. Antes fosse, em mim eu confio. Não confio naqueles que moram nos confins de qualquer coisa, pra lá de lugar nenhum, trancafiados no fim do mundo. O medo vem do desconhecido e teme a própria alma.

A quietude não deixava de ser metalingüística. A mesma quietude que reafirmava a idéia de um dia de domingo. Quem sabe com churrasco no quintal do vizinho, programas de auditório da televisão e todos aqueles clichês casuais e aceitáveis. Estava, pelos meus cálculos temerosos, há duas horas plantado na mesma cadeira. Duas horas e a mesma cadeira, o mesmo suspense. Minha visão óbvia enganava-se pelo vazio aparente. Minha mente era mais esperta. Mais duas horas depois, estava no sofá da sala.

Não sou o tipo de pessoa que chora lágrimas de esquecimento. Esqueço de mim para chorar melhor. Até hoje, nunca chorei. Meus olhos transpiram emoções baratas. Nada que me faça considerar o bastante para ameaças suicidas em prédios e pontes. A ameaça vem de fora, é tão externa quanto a solidão. solidão verticalizada.

Um dia depois. Devo ter desmaiado no carpete enquanto debatia-me. Estava certo da minha perdição, atirado, desmaiado, esquecido na sala de estar. Soube da presença de alguma outra pessoa ao ouvir as batidas na porta. Eram abafadas e distantes, faziam juz aos quase dez metros de diferença do carpete onde eu me encontrava. Já não bastavam os olhos para enxergar. Preferi fechá-los. Exatamente a mesma coisa, enxergava nitidamente, ouvida nitidamente, sentia toda a inexistência espaçosa.

Hoje. Quarto pequeno, claro, tenso. As paredes brancas servem apenas para me assustar. Como um sinal, uma carcterística única do local, que mais afetuosa que fosse, tinha um significado semiótico claro em minha mente. Nada me tirava dali, para o meu azar. O rapaz que me salvou, porém, trazia ainda um pouco de esperança para os dias cheios de pensamentos alegóricos. Vestia sempre o mesmo jaleco branco. Eu o chamava de doutor. Eu o chamava sorrindo. Hoje o doutor disse que vou passear no parque se me comportar devidamente. Quanto tempo não via as árvores, não sentava nos bancos brancos de madeira, não assistia o caminhar repetitivo das pombas. Era um eterno clímax quando elas voavam no momento em que alguém se aproximava.

Conto os dias, marco num calendário com fotos de cachorros. Dei nome a alguns, até brinquei com eles. Se dão muito bem, aprenderam a fazer suas necessidades fisiológicas no local correto. Acredito que vão se tornar ótimos cachorros no ano que vem, quando o próximo calendário vier. A cada dia uma apreensão ansiosa, divertida. Meu estômago brinca de esconde-esconde com o resto do corpo. Meus pés se cansaram de andar. Minhas mãos faziam amizades com os diferentes comprimidos.

O doutor disse que vou ficar bem. Confio nele. Falta pouco. Vejo a vida da pequena janela com grandes. Agora não consigo ver de outra maneira. Minha vida tem lacunas. O enquadramento da janela é reconfortante. Mais um mês ou dois e voltarei para casa. Volto para a minha esposa. Sinto falta dela, como sinto. O doutor disse que poderei levar flores, irei presenteá-la com um belíssimo buquê de orquídeas. Não entendo porque ela se mudou tão rápido, ainda mais para um lugar tão pequeno. Deve ter concretizado aquilo que vive às beiras de suas ameaças. Deve ter partido para viver por si.

Amanhã é o aniversário dela. As roupas no meu armários cheiram a naftalina. É uma pena, ela preferia meu antigo perfume. Estava preparado para o dia que passaria no molde de um mês. Não dormiria, estava decidido. Sustentava a minha insônia pelo único pensamento que me mantinha coeso. A frase esculpida na pedra de mármore sobre a sua nova moradia. "Sempre viverá em nossos corações adormecidos". Não entendo como alguém inventou frase tão inquieta, irritante. Não entendo porque ela foi morar em um local tão sombrio, tão pequeno.

As flores que carrego não vão durar muito. Tenho pressa. Vejo-me refletido em olhares fechados. Para mim, basta ela, minha esposa. Sempre viverá no meu coração adormecido. Da minha boca, faz mais sentido. Agora restava despejar as flores e ir embora. Não entendo como ela vive em um lugar tão pequeno. Talvez ela precise se espaço.

Agora apenas uma cadeira cambaleante me separa do meu amor. Amanhã, me mudarei para a nova casa dela. Espero que me aceite, pois discordo de flores atiradas. Me basta uma, a mais bela. A minha única flor enterrada.



Guilherme Zanella

(foto de Carla Salgueiro)

Um comentário:

MPadilha disse...

A mente humana é algo indescritível. Tanta coisa passa na mente de um insano. Eu acho o estudo mais complexo que existe. Muitas respostas ficam sem resposta. Teu texto é exelente! Muito bom!