sábado, 22 de março de 2008

O Algoz...




Estava de costas contra a parede, braços abertos, grandes pregos de nove polegadas fincados nas mãos espalmadas afixando-as à parede; nu, joelhos quebrados. Não conseguindo se manter de pé, o peso do corpo lhe rasgava as mãos. A dor, lancinante, tornava-se então insuportável a ponto de o obrigar a tentar se erguer.
As articulações do joelho queimavam como brasa, de dentro pra fora. Caía. Nessa balança torpe se partiam nervos, pele, ossos e juntas. Desmaiou. O corpo pendendo pra frente com os braços pra trás em V.
O Algoz se aproximou. Na mesa de aço com precisos filetes de sangue repousava um cutelo, reluzente, brilhando de tão limpo, pegou-o. Viu os próprios olhos refletidos e os observou com inusitado espanto. Voltando-se para a vítima o agarrou pelos cabelos de fios longos e ergueu-lhe a cabeça com violência.
Um pescoço branco e molhado, de pele grossa, se exibiu miserável. O rosto encharcado de suor, os dentes quebrados; salivava muito, a garganta ressonava em um som gutural, profundo e intermitente.
O Algoz se agachou aproximando seu rosto inexpressivo como que para ouvir melhor aquele som. Sentiu o odor salubre que exalava dos poros dilatados. O cheiro do medo.
Fechou os olhos em deleite, gozando aquele momento. Lambeu todo o rosto do homem inconsciente. Sentiu na língua a aspereza da pele com barba por fazer e gosto de sal.
Ergueu o cutelo que segurava na outra mão, o desceu com força no pulso esquerdo do homem nu separando a mão do resto do corpo. Lascas de parede se misturaram ao sangue. O corpo pendeu para a direita preso pelo outro braço. O cutelo foi novamente em direção ao alto, apontando o telhado do armazém velho. Caiu em um arremedo de violência decepando a mão direita.

A gravidade puxou o corpo maneta para frente; a cabeça embicou lançando-o de testa no chão. Tombou para direita ainda desmaiado, grunhindo e debatendo os braços em espasmos esquizofrênicos.

O Algoz caminhou seus passos vagarosos e sem emoção que o levaram até uma velha fornalha. Ele a abriu. Com um pegador velho e enferrujado agarrou os dois braceletes incandescentes. Se voltou à vítima que ressonava alto e salivava ainda mais. Com a ajuda de uma pinça menor encaixou os braceletes nos pulsos que minavam sangue. A cauterização foi imediata e o cheiro de carne queimada invadiu as narinas do Algoz, grudando nas mucosas como moscas em papel-cola. A vítima convulsiva se debatendo sobre o sangue que lambuzava o chão.
Arrastou o corpo semimorto até um tonel cheio d’água e o depositou lá dentro. Ensaboou todo aquele corpo sujo de sangue e suor. Esfregou a bucha cuidadosamente, lhe raspou a cabeça e fez-lhe a barba. Agora ele estava limpo. Com esforço, porém, com muita cautela, deitou-o em uma maca de hospital, fria e sem lençóis, inoxidável.
Os passos desritmados do Algoz desta vez o guiaram à enorme porta que selava a câmara fria do frigorífico. Levou suas mãos cinzas até à alavanca mecânica, que com um estrondo alto, que ecoou por todo o armazém vazio, destravou-a, a deslizando pesada para a esquerda. Apertou o interruptor acendendo as luzes que piscavam cadenciais.
Carcaças de animais pendiam de ganchos, congeladas. Dezenas delas. Organizadas em fileiras na grande câmara.
O Algoz se adentrou no recinto indiferente ao frio cortante, com seus passos de homem morto. Avistou no fundo da câmara uma pequena caixa de metal. De seus olhos escaparam um fraco brilho, oblíquo de satisfação. Achava que estava feliz. Talvez aquilo que sentiu fosse felicidade.
Caminhou seus passos vazios e arrastados. Foi buscar sua caixa. Ao alcançá-la seus lábios tremularam esboçando algo semelhante à um sorriso. A segurou, preciosa, exposta de fronte os olhos como jóia rara. Não se contendo, a abriu pra dar uma espiada.
Ouviu-se então o som áspero dos milhares de microscópicos cristais de gelo se partindo esmagados pelas dobradiças.
Ao ver o conteúdo prendeu a respiração, obstinado, como um garoto em uma noite de natal ao encontrar seus presentes.
Um estrondo ecoou na amplitude da câmara fria ricocheteando nas paredes. O Algoz se virou e viu a porta que se fechava lentamente. Fechou sua preciosa caixa e deixou seus passos descompassados o levarem rumo à saída.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Do outro lado o pobre diabo se arrastara pelos cotovelos, levando consigo as pernas mortas. Dos pulsos, da cabeça e das pernas eram emitidos impulsos pelo sistema nervoso alertando seu cérebro da grave situação. O cérebro, por sua vez, traduzia-os na linguagem que melhor entendemos: A dor. Entretanto, maior que a dor, é a vontade de viver. Ao acordar e ver o Algoz na câmara fria percebeu a única chance de sair vivo dali. Mesmo com o choque de se ver sem as mãos, conseguiu se arrastar, como um verme, até a entrada, e agora, desajeitado, empurrava a pesada porta de ferro que se movia devagar por sobre seus trilhos, rangendo.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
O Algoz caminhava seus passos sem emoção, movia as pernas uma por uma e olhava sua caixa muito limpa que abrigava seus brinquedos limpos e reluzentes. Esterilizados. Esboçou mais uma vez aquela coisa que devia ser um sorriso. Ele queria se divertir, como qualquer um. Todos se divertem, cada qual à seu jeito. Aquele era apenas o jeito dele. Vinha tendo uma noite agradável. Uma noite especial. Conheceu-o "Como era mesmo o nome dele?" naquele bar escuro - Achou que se se esforçasse poderia lembrar o nome - Era um homem que se mostrou muito culto e gentil. Ofereceu uma bebida para o Algoz, mas o Algoz não bebe. Não gosta de nada que possa lhe afetar a consciência.
Ia naqueles bares só para conhecer caras legais, que gostavam de se divertir, como aquele.
Esbarrou em uma das carcaças penduradas, que então balançou, ele a olhou e se lembrou do nome deste. Se lembrava... Sim. Este tinha os braços fortes e bonitos. O Algoz os amputou e costurou-os em uma carcaça de boi. Costurou os braços e a cabeça à carcaça. As mãos estavam lá fora, junto com as outras, pregadas na parede. Ornamentos macabros naquele armazém cheio de maldição.
Dava seus passos mortos, admirando suas obras de arte ali penduradas. Sua coleção particular. Cabeças de boi em cadáveres humanos, porcos com pernas e pênis humanos. Sentiu novamente aquela coisa que devia ser alegria ao imaginar como faria com este. Mas e a porta? A porta se fechava devagar. Pensou que alguma coisa estava errada. "Isto nunca aconteceu" Pensou o Algoz. Mas estava em êxtase com as possibilidades de criação.
Lembrou-se novamente de quando conheceu aquele homem no bar escuro. "Castelo". - 'Olá, meu nome é Castelo. Não quer se sentar pra me fazer companhia?'
Esse é o nome..."Castelo" Como os castelinhos de areia que nunca fez. Ná memória veio algo estranho. Não entendeu. Algo relativo à sua infância. Não soube o que sentiu. Castelo lhe ofereceu uma bebida, mas o Algoz não bebe. Castelo sim, bebeu muito, segurou a mão do Algoz, acariciou-a. Chegou mais perto e começou à lhe beijar. O Algoz não sabia o que achar quando faziam isso. Desde criança era assim. O pai o beijava também. Beijava e tocava como esses homens desses bares escuros gostam de fazer. Ele não sabia o que achar, mas considerava que fosse uma troca justa. Eles se divertiam com ele e depois ele se divertia com eles.
Ele e Castelo saíram do bar escuro com cheiro de fumaça e o Algoz o levou até seu esconderijo secreto. Lá deixou Castelo se divertir à vontade. Fizeram muitas das coisas que seu velho pai gostava de fazer. Aquelas brincadeiras secretas, como o velho dizia. O pai era açougueiro, e ao fim do expediente, fechava o açougue e fazia o que queria com seu filhinho.
Ria muito. Esfregava gordura no corpo do garoto e o lambia e esbofeteava. Obrigava-o a comer carne crua enquanto o penetrava. Ficava até altas horas da madrugada nos fins de semana. No fim, expelia seu sêmen sujo na cabeça do pequeno e depois se sentava e fumava um cigarro.
Ao ficar mais velho o Algoz decidiu que queria se divertir também. Ele tinha a sua própria idéia de diversão e julgou que era seu direito. Em uma daquelas noites, quando seu papai saciou sua jactância orgástica e se sentou pra fumar, o Algoz pegou um cutelo engordurado e o cravou na nuca do velho de calças arriadas. O pai levantou-se de um salto só, assustado. O cigarro caiu da boca e ele debatia os braços para trás tentando alcançar o que quer que fosse que parecia lhe arrancar a alma. O cutelo balançava. O sangue jorrava forte, esguichando nas paredes. O velho se movia engraçado. O Algoz adorou aquilo e riu muito. Dessa vez ele estava se divertindo. O seu velho pai perdeu então o equilíbrio e caiu de cabeça sobre o balcão de vidro, quebrando-o e afundando o rosto em uma bacia de fígado cru. Debateu-se um pouco mais e então parou, desta vez, pra sempre.
O Algoz se divertiu muito. Riu como nunca e ali mesmo o esquartejou, separou as partes e pôs a carne junto as outras do açougue. Vendeu toda aquela carne. Ouviu muitos elogios sobre a qualidade do produto. Depois conheceu esses bares escuros, com cheiro de tabaco e álcool, onde sempre haviam caras legais que gostavam de se divertir com ele, mas agora, ambos se divertiam, cada um ao seu modo.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Com esforço Castelo conseguia rolar a pesada porta, faltava pouco. "Esses maníacos desgraçados, maníacos desgraçados" Algo assim rodava em sua cabeça. Ouviu um baque forte seguido de um clic. A porta se fechou. Soltou uma gargalhada curta e demente. Se arrastou para a frente da porta e viu o trinco fechado. Começou à rir histericamente e caiu num choro forte.
Chorou muito alto.
Olhou suas roupas jogadas no chão perto de um colchão velho, não muito longe, e se lembrou de seu celular, discaria com a língua pedindo socorro. O pior já havia passado.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
A porta selou-se num som pesado e surdo. O Algoz achou estranho. Aquilo nunca ocorrera antes. Ouvira falar de pessoas que morreram congeladas, esquecidas trancadas dentro de câmaras frias. "Deve ser um jeito triste de morrer" Um pensamento fraco nesse sentido embaçou sua cabeça. Não sabia se estava triste ou feliz. Não entendia dessas coisas. Pensou nas pessoas que morreram daquele jeito. O frio lhes apertando os pulmões, endurecendo-os. Sem ter como destrancar a câmara por dentro, essas pessoas eram depois encontradas com o semblante em uma expressão eternizada, de pavor. Pensou no quanto era importante ter aquela câmara moderna, que destrancava por dentro e por fora, não gostava de sentir pavor. Talvez sentisse isso quando seu velho fechava as portas do açougue. Levou as mãos cinzas até a alavanca mecânica, destrancou a porta e a rolou para a direita. Olhou para a maca e a viu vazia. Sentiu algo semelhante a tristeza. Ouviu então um gemido engasgado à sua direita. Lá estava seu amigo Castelo. Arrastava-se nu e patético, suando e sujando-se no chão. Teria de lavá-lo de novo. Abriu novamente sua preciosa caixa metálica. Lá estavam seus brinquedos. Todos muito limpos, polidos, reluzentes e afiados. O Algoz gostava de tudo muito limpo.


Marcus Gonzalles
(publicado no Ebook do Vale das Sombras "Edição 2° Aniversário)

Um comentário:

Ana Kaya disse...

Belíssima estória de terror, se é que se pode dizer belo ehehehe.
Apesar de longo, o texto é bom e a estória surpreendente.

Fazia tempo que não lia algo tão aterrorizante quanto isso.

parabéns, texto de valente