sábado, 19 de abril de 2008

Caminhada por Pedro Faria


Caminhada

A Avenida se estendia à minha frente. Eu não tinha opção a não ser caminhar.
Comecei a andar, e logo na esquina à minha esquerda, vi um garoto. Deveria ter uns dez anos. Estava sentado no chão, encostado num poste, e observava duas formigas caminhando por seu braço.
- Não são bonitas? -, ele perguntou.
Eu não disse nada. Não podia dizer nada. Apenas o olhei, melancólico.
- Não são bonitas? -, perguntou ele de novo. Mais formigas subiram em seu braço.
Continuei olhando. Queria ir embora, continuar andando e acabar logo com aquilo. Mas não podia.
As formigas continuaram escalando o braço do garoto. “Não são bonitas?”, ele continuava repetindo enquanto seu corpo era invadido por milhares de formigas, até que ele se tornou apenas uma silhueta negra, e sua voz ficou abafada pelos insetos.
Passaram alguns segundos, e o corpo dele explodiu, as formigas haviam entrado por seus orifícios e o entupido. Os insetos se dispersaram rapidamente, e apenas uma mancha vermelha ficou na calçada próxima do poste. Continuei caminhando.
Andei, e logo vi a mulher. Ela estava nua, acorrentada a um carro. Estava encolhida, e gesticulava como se alguém a ferisse.
- Não, por favor, pare. Eu não agüento mais.
Suas costas estavam marcadas por arranhões. Cada vez que ela gritava de dor, novos ferimentos apareciam.
Ela me viu.
- Por favor, senhor, faça-o parar, por favor.
Balancei a cabeça.
- Pelo amor de Deus! -, ela gritou.
Então o golpe final veio, e seu crânio abriu-se em dois. Seus olhos estavam fixos em mim quando aconteceu. Queria desviar o olhar, mas novamente não pude.
Apenas continuei andando.
Não queria mais andar, queria parar, sentar no chão e ficar ali mesmo. Mas não podia, tinha que acabar aquela Avenida e chegar à próxima.
Andei até chegar à uma vitrine, do meu lado direito. Nela, estavam pintadas barras negras. Lá dentro, um homem estava sendo espancado por homens invisíveis, como a mulher acorrentada.
O homem não dizia nada, apenas aceitava a surra. Cortes apareciam em seu rosto, assim como hematomas. Num certo momento, sua cabeça foi lançada repetidamente contra a vitrine, até que seu pescoço quebrou. Eu vi então, num relance, alguns dos homens invisíveis, mas não reconheci nenhum deles. Não me importei muito com essa cena.
Finalmente avistei o cruzamento, e fui em direção à ele.
Na esquina eu vi a mim mesmo, sentado encostado em um poste, com uma seringa enfiada no braço.
Não pude dizer nada. A seringa estava cheia de insetos.
- É assim que você acaba. É assim que você acaba. É assim que você acaba.
Tentei tapar os ouvidos, mas não pude. Vi o meu fim e então lembrei de minha vida. Lembrei de meu irmão, morto ao cair em um poço ao seguir uma trilha de formigas. Lembrei de minha mãe, morta por meu pai bêbado. Lembrei de meu pai também, morto numa briga na prisão.
Principalmente, lembrei de mim, de minha última dose, que me trouxe para cá.
- É assim que você acaba.
Sim, é assim que eu acabei.
Passei pelo meu corpo, a agulha ainda enfiada no braço, e virei à esquerda, sabendo o que me esperava.
A Avenida se estendia à minha frente. Eu não tinha opção a não ser caminhar.

4 comentários:

Giselle Sato disse...

Pedro, está sombrio como nunca, arrepiante. Mergulhou fundo...bjs

MPadilha disse...

Mergulhou no lodo, no umbral onde almas purgam suas culpas, um mundo de suicidas/homicidas e toda espécie de "idas".
Muito bom Pedro!

ociné disse...

O curioso foi senti-lo muito mais real do que eu gostaria de supor. Algumas vezes, ouvindo gritos vindo da rua, olhamos pela janela e isso tudo está lá, vivo, caminhando pela avenida.
Tem um homem muito forte, que passa de vez em quando, socando a si próprio, não sei como ainda consegue aguentar, mas ele sempre vem da mesma direção, nunca volta. É aqui, do lado de cá de qualquer lugar.
Gostei muito mesmo
Parabéns.

Henrique Sá disse...

po mt bom pedro
um dos seus melhores textos
mt real, mt forte, parabens
vc esta evoluindo mt rapido
parabens mais um vez