terça-feira, 6 de maio de 2008

Meu Pavoroso Mauer



*



Eram precisamente 15:00 na Rússia. Eu, que fingi que não olhava o relógio, sabia, que não seriam mais que 9:00 aqui. Na praça de guerra, onde vivo, a vida parecia incomum: Não havia o ruído dos canhões, nem se ouvia mais gritos. Meu rosto sangrava, mas eu fingia não ver... Nem sentir.

Tentei provar que não havia começado o regime. Não havia muro subindo. Não haveria segregação. Nikita Kruschev não ousaria pôr os pés desse lado do mundo. Não é Agosto.

Tudo era um completa ausência de nuvens. o Sol caia como flecha, como dor, como ácido. Doía de tanta beleza.
Minha vida era a mesma e pouco sangue ainda se perdia, bem pouco.

A paisagem, se é que mudava, mudava lentamente. O fato é que, enquanto o céu resplandecia, eu não pude notar que a paz que ecoava era o princípio da tormenta. Ninguém me disse que o primeiro sinal do grito é o completo silêncio. E assim, não me dei conta que tudo avançava.

Somente quando o ar se fez rarefeito, quando os raios de Sol foram cortados, quando o cantar do meu passarinho se fez agoniado, então, percebi: Havia de fato um muro!

Não gritei, não resolveria.
Juntei meus cacos, guardei-os em baixo da blusa e por sob a pele, peguei o que me pertencia, abri a porta, saí. Não era muito, apesar de ser tudo o que eu tinha, o que eu levava naquele instante e apesar de sua pouca idade já sabia andar.

Mostrei-lhe, antes que tudo estivesse consumado, todas as cores, a brisa, os pássaros e o pôr-do-sol. Disse-lhe de paraísos e sonhos, mostrei-lhe minha tia e a rua onde cresci. Passeamos e retornamos. O que me acompanhava era a dolorida certeza de que a minha frente existiria uma barreira de certezas construída de concreto... e saudade. A caminhada me lembrava a cada segundo que eu deveria agora ter meu próprio gueto.

Mas não foi assim.

Quando cruzei minha vida à soleira da minha porta, o muro ainda subia.
Aquele par de olhos doces, pediam por quem ficara do outro lado, no outro gueto.
Ao que me foi indagado, expliquei, carinhosamente: “É o Apartheid, filha minha, é o apartheid.” Tentei ser mais sutil, porém não assisti “La Vitta è bela” por completo.

Foi então, que com suas pupilas infladas de curiosidade ela repetiu:
- O ataide, mamãe? O ataide! Mas... isso vai ficar aqui?

Com a blusa manchada, notei que meu rosto não sangrava tão solitariamente



(Jessiely Soares)






*Pavoroso Mauer: Expressão pelo qual era conhecido o muro de Berlim
**Não atenham-se aos fatos históricos, o texto trata-se de um prólogo e alguns fatos estão reunidos para demonstrar um fato em particular.

2 comentários:

MPadilha disse...

Teu texto passa um sentimento desesperador Jessiely. Nos remete a tantos muros, tanta história sangrenta e tantas vidas perdidas.
Muito bom!

Jessiely Soares disse...

Me
Obrigada!

Pois é, que é nossa vida senão um eterno e desesperador encontro com os nossos próprios muros e medos? Estou sempre presa entre as paredes que me oprimem... Um dia, derrubo esses muros, ou eles me derrubam.

Beijos!