terça-feira, 17 de junho de 2008

Escuro


Foi mesmo sem surpresas, que ao negligenciar a claridade dos eletrodos das soldas, tivesse o castigo cego. Adaptando-me ao escuro, qualquer pequena fonte de luz seria suficiente para ter alguma referência, manter o equilíbrio, mas também dor. Sob ataduras que aliviavam a queimação, um período de recuperação e descanso para os olhos ofendidos. No negro desses dias, descobri sons que nem sei se sempre existiram ali, ocultos na desatenção que a visão ocasiona, pois nos ocupa todo o tempo com o que imaginamos enxergar. Entre tantos desses sons, o eco de um latido forte, um cão de porte, que se repetia por cinco ou seis vezes e ia se desintegrando de volta ao silêncio. Intrigante era não identificar o original, o som que gerava o eco. Mentalmente, analisando a configuração das casas e muros próximos, pensava que vinham refletidos dos muros do Chora Menino, que nem era tão longe.
Alguém abre a porta repentinamente e inunda a escuridão com tanto barulho, que assusta. Assim foi, sol do meio dia, equatorial. Num passado de desequilíbrio, todo mundo pensou conhecer o meu caminho, pelo fio que caminhei, não podiam ter nenhuma certeza apenas pelo que demonstrei. Meu barbante é quase da cor do chão da noite, mas, na minha mão, a não ser por esse fato, que me encantou sem me permitir saber, que pelo visto ou não visto, nunca permitirá.
Inusitado, estranho e inesquecível. Quase tudo deixa de ser apego sem os parâmetros da visão, que nos amarra ao tempo presente. Fui averiguar o que seria, quase certo de que tinha trancado a porta.
Chegava e colocava uma música muito suave, sempre.
Na primeira vez, sai ao ouvir a porta. Descendo cuidadosamente os degraus, apoiado mo corrimão da escada, senti sua mão, macia, pequena, feminina. Primeiro um espanto sem reação, cego desacostumado, escuridão total. Apenas permaneci sentindo a pequena mão que veio passear pelo meu braço. Fiquei imóvel pelo inesperado, a ausência de ameaças aquetou os meus instintos. Meu peito, pescoço, nenhum movimento brusco e uma respiração a mais. Depois foram as minhas orelhas e tateou todo o meu rosto, o silêncio parecia importante. Seria, de qualquer modo, do seu jeito, me importei por alguma razão, que fosse feliz como desejasse. Levou-me de volta pela mão, senti no meu pé a ponta do lençol que sobrava no chão e deitei-me obediente. Uma atenção estranha a mim mesmo, percebia o som distinto do eco distante, que voltava em intervalos mais ou menos regulares.
Um perfume nunca marcou tão doce, perfeito. Misturava suas carícias aos lentos movimentos que me despiam. Suavemente demonstrava sua vontade, que evitava a disposição curiosa das minhas mãos, conduzidas acima pelas suas, para o travesseiro. Leve, meu corpo sabia de sua delicadeza, sem vê-la. Magreza lisa, longos e volumosos cabelos bem cuidados, que caiam sobre os meus olhos que não podiam ver. Apreciava a indiferença da cor no tato do meu rosto. Veio vagarosamente, deslizando, trazendo sua umidade que me desenhava, passando desde onde quis até o beijo que me deu na boca. Entre os seus secretos, instintivos e trêmulos movimentos, nos gemidos que a atraiçoavam, o todo que guardei da sua voz. Grossos lábios, hálito quente e os sabores trocados marcaram minha saliva com o doce da sua paixão.
Confuso, entre os cabelos que me sufocavam, cedia o meu todo ao seu repouso, debruçada sobre mim e tudo mais se acrescentou à sua sede, a que a trouxe. Envolveu-me com a sua vontade e o seu calor eu senti ser o meu calor, extasiado, sob o feitiço misterioso e mágico, do qual nunca poderei saber, desde quando me desejou. Dançou de um vagar ritmado ao som de sua música até desconexo exasperado de nossa satisfação, quente, quente e urgente. Novamente com o dedo na minha boca me tirou a pergunta sobre o seu nome, quando uma lagrima pingou no meu lábio. Depois, com que lento cuidado se levantou para o lado, um zelo de amor antigo deixou sobre mim o lençol e um silêncio cheio de saudade tomou todo o meu ser.
Assim foi, tantas vezes quanto quis, nos treze dias de minha escuridão. O meu sol do meio dia, na hora do seu desejo. Sem importância, me veio à mente, que antes eu não possuía a música que nos embalava sempre. Depois de algumas vezes, também pude relacionar sua vinda ao barulho distante do cão, que também desaparecia, passados alguns minutos de sua partida.
Recuperada a visão, sem os curativos, caminhei por todos os lados, tentando ouvir em alguma bela e magra mulher, o mesmo timbre dos gemidos que guardei na memória. Nunca encontrei e também não ouvi mais os ecos dos latidos daquele animal, que terminei por supor, seu guardião.
Se for em cima como é embaixo, entre os mistérios da escuridão, há espaço para um grande amor e para a sua grande saudade, mas a música que me foi deixada trata de amenizar um pouco, só um pouco.

2 comentários:

Raiblue disse...

Meu lindo René...

Li e reli muitas vezes seu conto...guardei pra mim de tão belo que é...
Misterioso e delicado assim como é o amor...nasce na escuridão,quando enxergamos através do tato ...do cheiro ...da audição...e do gosto...sem precisar ver, pois já foi sentido...O amor é sentido antes de ser visto...E quando vemos,muitas vezes, ele desaparece porque perde o encantamento que havia quando tudo apenas era sentido...
Que delicadeza de descrição do amor se derramando na escuridão acesa...sobre a pele exposta aos sentidos...sem nada exigir a mais...Até que uma pergunta da 'razão' sempre curiosa...acende a luz e apaga o momento mágico de amor...que se fazia pleno em seu silêncio apenas sentido...

Sem palavras...
Emocionante...de verdade...

Você sempre me fascina....e me liberta....obrigada por tudo que silenciosamente vc me provoca...

Um beijo azul p ti...na escuridão mais acesa que há em nós...
Blue

nico disse...
Este comentário foi removido pelo autor.