quinta-feira, 19 de junho de 2008

O BICHO PAPÃO- Giselle Sato


Rita puxou as cobertas e se encolheu na caminha apertada.
A escuridão e a noite chuvosa contribuíam para que seu pavor aumentasse ainda mais.
O som ritmado dos passos no corredor de tábuas era quebrado apenas pelo baque seco do salto contra a madeira. Mentalmente contava os tons altos e baixos, dez, nove, oito....e então silêncio.



A porta do quarto nunca era trancada. O monstro espreitava .
Não tinha pressa, e ela esperava de olhos bem fechados, coração pulsando forte, tremendo de frio e medo.



Desde menina , Rita era assombrada por terríveis monstros.

Foi embalada por uma canção de ninar onde um boi da cara preta engolia o pranto das criancinhas com medo de careta. Mais tarde, corria para casa com as ameaças do velho do saco e do bicho papão.

Sempre havia um lobo mau pronto a atacar se fosse desobediente.



Os pais eram severos e não admitiam que a menina corresse pela casa ou sujasse as roupas na terra.


As outras crianças brincavam de pique e andavam de bicicleta enquanto Rita, sentada no degrau da frente da bela casa, exibia impecável laços na bem comportada “maria –chiquinha”, o vestido muito bem engomado.



Rita olhava os sapatos boneca de verniz brilhante sem um só arranhão e com a ponta das unhas puxava os fios das meias ¾ , desfiar era sua única distração.



Aos poucos compreendeu que seu limitado mundo era um refúgio de dores e doenças.
A casa cheirava a desinfetante e éter. Pomadas e ungüentos.
A mãe lamentava a artrose e o pai trabalhava dia e noite na padaria, sofria de pressão alta e não podia ser contrariado nunca. Os familiares haviam se afastado no decorrer do tempo e ninguém os visitava.



A televisão ficava ligada em programas femininos. A mãe adorava copiar receitas e acompanhar as novelas.
Rita não podia assistir os folhetins nem ler qualquer obra.
Tudo passava pela censura paterna, nada escapava dos olhares atentos da mãe zelosa que sempre a acompanhava a escola, cinema ou qualquer outro local.



Perigo. A mãe andava pelas ruas arrastando a menina pelo braço atenta aos mal encarados e suspeitos:-Está vendo aquele homem ali parado? Vamos atravessar, é assaltante ou tarado. Vê como nos olha? Cuidado Rita, são os piores tipos.



Rita não via nada de mais na pessoa em questão.

Muito pelo contrário, achava que o pobre homem devia estar horrorizado com a mulher com cara de louca correndo pelas calçadas como se perseguida por horda infernal



Treze anos de prisão.
Começou a mostrar impaciência e descaso, a exigir maiores explicações para tantas proibições.

A mãe chorava e fazia queixa ao pai, temia que a filha perdesse o rumo, a menina estava rebelde demais.



Naquela noite Rita sentiu os olhares atentos dos pais durante todo o jantar. Descontentes e ameaçadores.

O pai era um senhor rude:- Sabe Rita, sua irmã começou a ficar como você e teve um final trágico e vergonhoso.



-Por favor Adalberto, não tocamos neste assunto há anos.



-Irmã? Eu tenho uma irmã? Onde ela está?



-Morta.



Rita nunca desconfiou da existência da irmã. Era filha única temporã:- Porque nunca me contaram nada? Nem uma foto? Nada....



-Ela desonrou esta família, fugiu grávida e desapareceu com um bandido qualquer. Soubemos depois que morreu de parto. Tinha só quinze anos.



-Depois fomos abençoados com sua vinda e prometemos nunca mais tocar neste assunto.



-Não acredito que vocês esconderam tudo isto, eu sou uma menina normal, quero ter uma vida como a das outras pessoas. Vocês me tratam como uma prisioneira.



-Basta. Nesta casa só quem fala mais alto sou eu. Já para seu quarto. E não sairá do castigo até aprender a ser mais educada.



A mãe chorava e precisou tomar fortes calmantes.
O pai ligou o rádio e pegou a garrafa de conhaque. Logo o fedor do charuto barato invadia a casa.


No quartinho Rita chorava a irmã desconhecida e a vida miserável. Cansada acabou dormindo.


Meia- noite. O relógio antigo bateu as horas e Rita ouviu o som dos passos.

A maçaneta girou e a figura escura entrou sem receio, sabia que ela não gritaria nem teria qualquer reação.


O monstro puxou as cobertas e levantou a ponta da camisola da menina, cheirava a conhaque e charuto, suor e maldade.


Antes de começar mais uma sessão torturante sussurrou:- Se não quer acabar como sua irmã obedeça, seja uma boa menina, não quero ver sua mãe chorando por suas desfeitas nunca mais ouviu bem?



Rita não ouviu nada, estava longe, perdida na floresta Negra, fugindo dos lobos e monstros. Suplicava por socorro ouvindo as risadas da Bruxa Mãe que fingia não enxergar nada.



Desta vez havia uma outra menina na estrada esperando. Seguiram juntas o caminho da escuridão onde os gritos de dor sopram como o vento.

Um lamento para os inocentes que sofrem esquecidos

5 comentários:

MPadilha disse...

sofrem sim, mas jamais esquecidos...eu acho que está quase terminando...
muito bom texto...

Adroaldo Bauer disse...

Lindo preito Gisele. Comovente.
Belo libelo!
Parabéns!

Giselle Sato disse...

Falar sobre incesto, pedofilia e estes monstros É PRECISO. Que possamos sentir o que os inocentes sofrem e lutar contra estes bichos papões.

Carlos Reis disse...

Além de tudo, uma escritora com tino social....

Parabens

Beto Reis

Ana Kaya disse...

Gi, que forma magnifica de mostrar um drama tão enorme, uma barbárie tão grande.
O texto prende a atenção e nos leva ao final não imaginado durante a leitura.
As duas meninas na estrada é lindo e triste demais ao mesmo tempo.
Adorei, menina tu és uma gênia eheheheheh.
Beijos e parabéns.