sábado, 12 de julho de 2008

AUTO-EXTINÇÃO



Essa tarde, mais uma vez, eu me precipitei até o banheiro. A pressão dos dedos na garganta ajudou a comida a voltar e espirrar para todos os lados, acertando a parede.


Depois do ato de violência com meu corpo, eu não tive forças para sair do chão úmido do banheiro; onde estou sentada até este momento.

Vomitei, expeli de novo minha culpa, meu medo de mudar meu corpo. Estou fraca agora.

Noto que as manchas de mofo atrás do vazo sanitário estão muito grandes. Faz algum tempo que não as limpo, elas estão crescendo à medida que eu diminuo com minhas explosões de vomito.

Uma aranha pende no canto do meu banheiro, a teia, onde ela desce e sobe é cristalina. A aranha é marrom, é muito bonita, algumas vezes em que me encontro no banheiro eu converso com ela, invento diálogos onde ela quase sempre me responde, e eu tenho passado muito tempo no banheiro agora. Ao lado da aranha há uma pequena janela, e por essa mínima fresta eu noto os últimos raios de sol do dia indo embora.

Escuto o barulho das pessoas entrando e saindo da pensão onde vivo. A maioria inquilinos, pobres, miseráveis, sub-nutridos, negros marginalizados, brancos sem-teto, semi-mendigos, adolescentes, viciados e prostitutas. A escória da sociedade. O vomito da evolução - Uma pequena associação engraçada.

A pensão uma casa velha, de madeira com a pintura descascada fica em uma esquina, torta, mal colocada. Quartos coletivos. Quartos semicoletivos. Quartos privados com banheiro, como o meu, o luxo do lixo.

O lugar tem um cheiro acre e adocicado, eu pensei em restos humanos quando inspirei pela primeira vez aquele odor estranho. Eu já não me incomodo com isso há algum tempo. Posso dizer do fundo de minha alma que gosto muito de ficar sentada na parte mais fria da minha pequena e fétida residência. Sinto paz aqui.

Observo as manchas na parede, não sei se meu estado de profunda fraqueza me faz ver coisas irreais, mas essas manchas estão me parecendo maiores hoje. Uma delas parece se avolumar e descer pelo piso de azulejos antigos do lugar.

Gases. Eu ainda sinto meu estomago um pouco cheio. Quem me dera conseguisse colocar mais um tanto de comida para fora. Força, queimação, dor na garganta machucada. Um pouco mais de excrementos expelidos pela boca. Um pouco de saliva escorrendo.

A lateral do vazo sanitário está cheia de mofo agora.

Eu me encolho no canto do lugar. Meu corpo se sacode em pequenos espasmos. Durmo. Acordo. Durmo outra vez.

Quando acordo novamente, fico realmente desperta. Está escuro e eu quase não vejo nada. Ligo a luz.

Tento gritar, não existe força para tanto em mim.

O banheiro todo está tomado por grandes manchas de fungos. Manchas, já não mais. Aquilo se estende como um grande tapete por todo o lugar.

Aos poucos o pânico que sinto acaba. Não consigo me preocupar com aquilo. Desvio meu pensamento para meu corpo, meu peso.

A ultima vez que me levantei do piso do banheiro foi para me olhar no espelho sobre a pia. Notei que há um pouco de mofo nascendo nos cantos de minha boca, minhas orelhas já estão cobertas e meu cabelo agora é verde escuro. E, no entanto não consigo sentir medo.

Amanheceu novamente. A aranha que estava no canto do meu banheiro não se meche mais é apenas um ponto redondo e bolorento em sua teia. Olhando para o pequeno animal assim tomado pelo mar de mofo eu penso em quanto tempo ainda me resta até ser engolida também.

Por incrível que pareça essa idéia já não me parece tão ruim.

Juliana T. P.

2 comentários:

Adroaldo Bauer disse...

Semelhança tétrica com Metamorfose, de Franz Kafka.
O texto é tão bem feito que o nojo, o asco, os engulhos, o drama, a penalização que se poderia ter por remanescentes ainda humanos na personagem chegam com impacto indescritível no leitor (a mim chegaram, pelo menos). ´
é necessário estômagoe coragem para ler.
Iniciada a leitura, quer-se parar e não se consegue, se prossegue até o final compelido, por cumpulsão, já por crédito à autoria, por curiosidade já desperta inclusive... onde isso mesmo vai dar?
O mofo deu...
Dá-se assim uma visão de mundo, algo desconfortável e antisséptico, muito além da dengue, da lama, do fétido...
Um mundo real, da maioria dos humanos, ao menos.
Muito bom.
Palmas!

Ana Kaya disse...

Nossa Ju, vc está cada dia melhor, fica um tempo sem escrever, mas quando o faz é com primazia.
Me coloquei um pouco na pele da personagem, mas é duro demais pra aguentar muito tempo.
E que imaginação, parabéns.
A minha imaginação está meio mofada nos últimos tempos, acho que andei passeando pelo seu conto enquanto dormia ehehehehhe.
Grande menina. Te adoro.
Beijos e outra vez parabéns.