domingo, 24 de agosto de 2008

A Hospedaria do Diabo


Reúno aqui os capítulos de 1 a 8 já aprontados para facilitar a leitura, sem ter que sair por aí a pessoa interessada abrindo linques para encontrar os capítulos anteriores.
Os que ainda não haviam lido capítulo algum, ficam apresentados a essa minha novela ainda inconclusa que se vai encerrar no mês de setembro, se espera, conforme as previsões mais otimistas, independentemente do resultado das pesquisas quantitativas ou qualitiativas que, nós do Vale das Sombras, estamos nem aí para institutos fazedores de imagem.


Adroaldo Bauer



Capítulo 1

O silêncio compacto tornou tétrico, feral e lúgubre toda a ala sul, onde era localizada a Hospedaria do Capeta, como os demais presos batizaram a 66, cela isolada, de chegada e trânsito entre as alas que se definiam por níveis de periculosidade na Casa de Detenção. Os vizinhos da hospedaria estranharam o repentino silêncio. Certo que era já noite alta, mas o preso do cubículo 66 esmurrara paredes e grades desde que chegara ainda no final da tarde da véspera e nada o fizera parar até aquele momento, seguramente umas três da madrugada, conforme a posição da lua vista detrás das grades. Ou dormira ou desmaiara. Os demais ainda insones estalaram olhos e aguçaram ouvidos. Nada.
Talvez estivesse morto.
A carceragem não se surpreenderia. O passeio da manhã no pátio interno de certo seria tenso para o novato. A lenda do lugar era que matador de criança ou estuprador de mulher morria cedo ali, muita vez antes de ter sentença em julgamento. E de motivos diversos. Até suicídio aparecia como causa das mortes assim.
Dois dias antes a imprensa dera copiosa cobertura da casinha destruída por incêndio, do cadáver de mulher incinerado junto a dois outros, de crianças.
As primeiras informações, ainda nos noticiários de rádio, reportavam incêndio, descuido da mãe, curto-circuito. As hipóteses ligeiras e comuns sempre sustentadas pela pressa incauta de dar publicidade à tragédia. As imagens de televisão foram de um bombeiro operando o rescaldo dos escombros, revirando cinzas. E uma boneca de plástico enrolada em um cobertorzinho rosa num carrinho de bebê milagrosamente intacto parecendo coisa plantada ali para animar a cena que as outras imagens tornava banal. Os jornais diários, mais parcimoniosos todos, menos o escandaloso Berro da Hora, já especulavam hipóteses de crime passional ou latrocínio.



Capítulo 2

Um plantão de polícia na sexta-feira já é uma merda, com esse gelo de zero grau e chuvarada, pior será, ajuizava com dois botões de um surrado casacão três quartos o inspetor Cheguêva. A uma da madrugada, então, a geladeira em que se transformava a sala úmida de alvenaria já sem reboco do prédio da 13ª Delegacia de Polícia era um cenário que cooperava com o raciocínio do polícia, que apenas dormitava em razão de que pés, pernas e a bunda; da cintura para baixo, o corpo inteiro, não havia jeito de aquecer. Tentara todo o possível. Mover-se. Enrijecer os músculos. Descalçar os sapatos. Trocar de meias, que trouxera nos bolsos um par delas de lã, sobressalentes para aquelas ocasiões. Por fim, medida que aprendera com mendigos nas rondas de rua, enfiou jornal velho nos sapatos, que molhara na chuva para chegar de casa até ali, caminho diário de um pouco mais de dois quilômetros percorridos a pé, em qualquer condição de tempo. Olhou a folhinha do calendário e deu-se conta que também era 13 o dia do mês de agosto em que fazia aquele plantão polar na 13ª. Suspirou desalentado.
- Vai dar merda!
- Que merda que nada, considerado, é barro. Fede, mas é só barro. Cai um caldo de dar dó. Vai desabar barraco no morro. É só esperar. O mal já foi feito, falou à guisa de saudação à chegada o inspetor Valafora, colega de plantão de Cheguêva naquela sexta.
- E choveu só pra ti, ô sem alma? Eu molhei o pé no vaso aqui do mictório, é isso? É água tanta que a Várzea do Agrião já virou raia de remo e vela, mais um pouco os sem patrão vão jogar os caícos nágua do Arroio Areão, é só esperar. Boa-noite pra ti também, colega. Sente aí e vá encilhando o mate que eu já ponho a chaleira pra aquentar.

Não tinham trocado três cuias, a parelha foi interrompida pela estridente campainha do telefone, já posto em sala contígua como tática de precaução para evitar desmaios de paisanos, modo como os polícias chamavam o contribuinte que se apresentasse à DP para requerer serviços. Lembravam sempre em momentos de descontração de uma certa feita em que um paisano despenhou-se para baixo de um birô no tilintar de trovão do telefone e não havia santo que fizesse o homem acreditar que fosse apenas uma campainha.
- Me alcança uma arma que eu ajudo! Tá vendo alguém? São muitos? O ronco é de calibre grosso, podem crer.
- Tu és prejudicado de guerra, vivente! Sai daí debaixo e te apruma nos conformes que isso aqui é só local de trabalho, não temos plantão médico. Alguém traz aí um chazinho pra acalmar o moço dos nervos, convocara o delegado que ouvia a parte numa queixa contra uma vizinha.
- A sirigaita põe a vitrola no último furo, com aquelas modas de viola e fica se estufando pros moleques da rua toda. Já tem visita chegando até da rua de baixo pra bisbilhotar o ponto turístico. É pura algazarra o dia todo. Até dez da noite, quando ela desmancha o teatro e ainda fecha a cortina com um adeusinho beijado de mão, seo delegado.
O queixoso acabara de ouvir do funcionário que há direitos e bom senso, que uma conversa ia ser feita com a dona, quando o telefone tocou naquele espalhafato atingindo em pleno os nervos já abalados do homem.
- Beba o chá e acalme-se. Essa sua queixa tem remédio, aconselhava paciente o polícia quando recebeu de troco uma resposta inusitada:
- Chá eu tomo em casa, o senhor me respeite que eu quero é sossego.
A reação desmedida do queixoso foi recebida por estrondosa gargalhada dos demais presentes, uma senhora com um guri de olho roxo, a roupa rasgada; dois homens de gestos efeminados que até ali haviam sido apenas sussurros e cochichos, o gurizote faz-tudo, estafeta da repartição, e Ofelina, a servente, que quase deixa cair a bandeja em que, solícita, já trazia uma xícara de chá para o alterado queixoso.
O episódio virou lenda na 13ª.

- Atende lá, Valafora. É pra ti. Aliás, às duas da madruga só pode ser pra t, deve ser aquela...
- Pode parar por aí, considerado, já estou lá. Deixemos as privadas no recato...
- Se a privada é pública, não tem remédio, colega...

Com o retorno do silêncio ao ambiente, agora sobrestado o tumultuoso alarme acoplado ao telefone, Cheguêva apercebeu-se de que a chuva estancara. E também de que os pés já se haviam aquecido com a receita infalível apropriada dos miseráveis. “Melhor que não sou pé-frio em sexta 13”, regozijou-se o inspetor, ainda sem suspeitar do que ou quem era ao telefone, do que não retornava o colega há já uns cinco minutos.
- Tragédia! Explodiu um botijão de gás, incendiou um barraco no Morro Carlota do Piá! Tem morte! Parece que até criança! Apronta-te que vou chamar o vigia pra segurar o plantão!
Valafora era só agitamento, a exclamação em pessoa.
- Pego a camioneta ou o sedan?
- Pega um carro que ande e nos traga de volta, Valafora, deixa de suplício. Vai logo senão chegamos depois dos bombeiros saírem e o povo caga a cena do crime. Pressa, homem!
- Quem falou em crime, ô agourento? É incêndio. Explosão de botijão de gás e fogo.
- Tem morte, é quase crime. Pra mim é assim. Pressa, vivente!





Capítulo 3

A intermitência da estrepitosa sirene de um carro de bombeiros acordou de supetão o Morro Carlota do Piá. Adultos e crianças correram às janelas e portões. As de colo e os bebês desataram em choro. Polvorosa era aquilo. As vielas estreitas e o barral não permitiam progresso rápido à viatura. Enfiados em improvisados abrigos contra a chuva, que iam de chambres a toalhas, passando por sacos de aniagem à moda de capotes, a multidão que se formou rápida amorteceu ainda mais a velocidade da marcha. Formou-se procissão à entrada da pequena vila onde o chamado telefônico dizia estar acontecendo o incêndio.
A sirene convocara mais que a urgência. Espicaçou a curiosidade do povo. A guarnição emperiquitada no carro parecia de santos em andor. Não faltaram sombrinhas, guarda-chuvas, até guarda-sóis de praia arremedando estandartes. O séqüito transmudou-se em fúnebre cortejo no minuto mesmo em que o alarma serenou. No cume do morro, isolada a um canto de uns matos, uma casinhola ainda ardia em poucas chamas sob um chuvisqueiro ralo, que já amainara a tormenta de há menos de meia-hora.

Valafora escolhera a perua preta com faixas brancas largas para subir Ao morro, argumentando ao parceiro que o veículo maior emprestava mais autoridade à operação que o pequeno sedan. Na embarrada curva de acesso à via principal da vila, com a redução de marcha, a perua refugou o aclive e quase desanda morro a baixo, em ré. Cheguêva grudou-se ao freio-de-mão enquanto gritava para o colega engatar a primeira marcha que acavalara a transmissão.
- Aí doutor! Essa lomba dá trabalho até pra caminhão de gás. Toca de freio puxado que ajuda.
Cheguêva não estranhou o cumprimento nem a orientação, que acabou sendo ajutório. Venceram a lomba em curva em segundos que pareceram horas de aflição, mais pela expectativa do vexame que dariam em público do que pelo risco corrido. Não estranharam a quantidade de gente acompanhando a perua à frente e nas laterais por terem já ouvido há bem dois quilômetros dali o inconfundível sinal dos bombeiros.
- Então, colega, adiante! Roda a manivela e faz soar a sirene e vê se afasta esse povo que não tá ligando pra autoridade do teu camburão.
Valafora não respondeu, mas obedeceu. Ele mesmo improvisara a sirene manual desde que a de fábrica há muito pifara sem conserto. Pegou uma extensão de fios por debaixo do painel dianteiro do carro, ligou nos contatos e rodou com volúpia quase infantil a maquineta posta para fora pela janela.
Abriram alas muito lentamente na multidão e invadiram o pequeno sítio da funesta ocorrência. A guarnição dos bombeiros encerrava já os trabalhos. Pouco pudera fazer além de recolher os corpos carbonizados de uma mulher e duas crianças para um rabecão e isolar o acesso à casinhola em escombros, as toras de madeira do telhado arriado pelo fogo ainda esfumaçando do rescaldo ajudado pela chuva.
Uma câmara de televisão perseguia o facho de um pau-de-luz por sobre a ruína calcinada recolhendo para a edição da manhã as imagens de uma boneca de plástico num carrinho de bebê.
- Que circo é esse? Que vocês pensam que tão montando? Não chega a desgraça, tem que ter crueldade? Tenho certeza que vão dizer lá no jornal que plantaram o brinquedo aí, com cobertorzinho rosa delicado e tudo e que a casa queimou toda e matou três e a boneca de plástico se salvou do tenebroso incêndio. A crueldade não tem mais limite! É tudo urubu em banquete no inferno! Arreda, arreda!
O protesto do inspetor Cheguêva era dirigido fisicamente aos jornalistas da TV. A peroração contra a farsa óbvia também justificava entre os mais próximos a encenação própria, o trovão da voz impostada, os gestos de comando, tudo há muito estudado em laboratório de dezenas de cenas iguais era destinado à alma do apinhado, que não movia milímetro de espaço para a investigação ser iniciada se não fosse tocada em profundidade.
E ao público da TV se a edição não cortasse a tomada dele.
Cheguêva arrematava como sempre naquelas circunstâncias: “quem ficar é testemunha, se tiver algum crime pode ser indiciado como suspeito, podem ir dando lugar ao trabalho da polícia”. As últimas três palavras eram sempre soletradas, pausadamente, ainda em voz alta, mas já em tom conciliador e conselheiro, dirigidas agora só ao povo presente.
Explodira um botijão de gás. A alvenaria da cozinha viera a baixo, arriando também a madeira do telhado. O fogo pegou nas treliças, nos tabiques, na mata-junta, no soalho de pinho, nos escassos móveis da peça feito fogueira junina.
- Na urgência de acudir, pulei duas valetas vindo para cá e me arranhei toda segurando no arame farpado pra não cair no lodo, repetia a quem chegasse uma vizinha de fundos da casa incendiada. Falava e erguia a mão à altura dos lábios, o gesto dando extensão às palavras. “O fogaréu era junto. Uma chama só, lambendo toda a outra peça de madeira, que era quarto e sala”, tagarelava compulsiva, reiterando o detalhe do próprio acidente com a cerca.
Aglomerado na viela ainda ladeada por duas caudalosas corredeiras resultadas do aguaceiro, o povo lamentava condoído a rapidez do sucedido sem chances ao socorro mesmo de vizinhos de lado e frente, coisa de 150 metros no máximo do lugar da tragédia.
Eram já quase três horas da madrugada, Valafora dentro da perua conversava com uma outra pessoa e teve um estalo. Despediu rápido e sem rodeios a mulher que já se debruçava na janela do veículo em prosa solta e só não correu no encalço de Cheguêva para não resvalar no lamaçal e rolar para uma das valetas da viela, agora já sem as cachoeiras antes evidentes.
- Chê! Chê!
- Calma, respira fundo e fala...
- Guardou a lata do sujeito contra o Chile?
- Que língua é essa, homem? Fala feito gente.
- Cheguêva, te deste conta que só uma pessoa desceu o morro enquanto nós vínhamos para cá e todo o resto era essa romaria aos céus? Justo o sujeito que te mandou grudar no ferro pra eu tocar fundo, lembra?
Cheguêva fingiu que não era com ele a provocação capciosa da malandragem e respondeu à altura do perguntado:
- Vamos investigar, doutor Valafora, vamos investigar...




Capítulo 4

- Zelito, pega teu irmão e passa pra dentro, já! Sai da ventania que vai chover. Vem logo, menino!
O chamado de Carlota pelas crianças seguiu-se a avistar um céu de chumbo que se formou num repente sobre o morro onde moravam, de um jeito dos que preparam vendaval e chuvarada. Correu a recolher a roupa nos varais repletos aos fundos da casa. Aproveitara para secar montanhas de camisas, blusas, calças, lençóis e fronhas naquele mormaço fora de época que a cidade costumava enfrentar nos agostos de inverno mais rigorosos. Fora um dia de 30 graus aprontando uma noite de cinco. Enquanto retirava a roupa a passar para entrega no final do dia, ainda antes da novela da tevê, Carlota fazia mentalmente a contabilidade dos ganhos com as 13 trouxas que lavara na semana. Mais com mais, menos tanto, põe e tira... Deu-se a si mesma um sorriso satisfeito de quem poderia comprar aquele tubinho vermelho para estrear na Primavera e os novos chinelos de borracha colorida para os filhos.
As crianças dela eram dois meninos, um de 12, outro de cinco anos de idade, que ela aos 25 cuidava como poucas. Amava-as de tal modo que nem deixava ficarem sós mais de um minuto.
- Criança é azougue dona Ofelina! Descuidou, tá pregando peça na gente, fazendo traquinagem e ralando a cara no chão, comentara com a vizinha ainda pela manhã, quando estendia pacientemente, peça por peça no varal, dois prendedores de madeira em cada para esticar bem os panos e buscar melhor o vento e o sol.
- Manhê! Deixa a gente tomar banho de chuva, deixa! Pediu um esbaforido Zelito, vindo correndo da rua sem pavimento, já levantando um pó vermelho fino com o vento forte do temporal que se armava, trazendo quase de arrasto o irmão Piá, como a vizinhança apelidara o mais novo de Carlota. Piá fazia caretas e se contorcia tentando livrar-se da pegada forte da mão de Zelito. Surdo, não emitia som pelo descontentamento. Era apenas esperneio de insatisfação de estar a reboque naquelas condições de euforia do irmão.
- Banho de chuva só no pátio dos fundos, no piso de laje, sem barro. Se embarrar, vão ficar do lado de fora até eu terminar de passar a montanha, consentiu Carlota, apontando para as roupas já recolhidas empilhadas sobre a cama de casal que dividia a única peça da casa de uma cozinha minúscula em que fogão e uma mesinha redonda formavam a mobília com um armarinho suspenso sobre a cuba de uma pia sob a qual alojava-se rente à parede um botijão de gás. Além da cama, um vão em que cabiam apertadas ela e a tábua de passar e, após ela, já na outra parede, um roupeiro de duas portas e um tamborete sobre o qual instalara televisão e rádio-relógio.
Sobre o armário, todas as demais riquezas da família, um triciclo de plástico, uma mala preta grande e um enorme bicho de pelúcia que ganhara numa rifa de quermesse. Um urso branco já amarelecido pela poeira que não havia jeito de evitar entrasse em casa, quanto mais em dia como aquele de ventania. Apressou-se a estender um lençol enorme sobre as roupas recém lavadas para não empoeirarem e baldarem o serviço do dia.
A faina de Carlota foi interrompida pela música do alto-falante do caminhão de entrega do gás. Ela correu até a porta e fez o gesto de sim com o polegar da mão direita para o entregador, que alçou um botijão ao ombro e veio no rumo da casa. Ela era toda sorrisos com o moço da entrega, que já se conheciam de há muito, até intimamente, ele inclusive desconfiado de que o Piá fosse filho dele, tanto que se pareciam os olhos azuis dos dois e o cabelo loiro grosso feito palha de milho, nada similar ao de Carlota que os tinha pretos e finos, escorridos até o meio das costas, bem cuidados e limpos, quase sempre em longa trança, pelo que muita gente a chamava de cigana, Cigana do Piá.
- São meus tesouros, além das crianças, estas madeixas de madalena que mamãe sempre me fez bem cuidar, dizia prosa em resposta a quem comentasse da beleza da longa cabeleira.
- O senhor, seu moço, pode trocar o botijão para essa sua amiga que está cuidando de roupa lavada e não deseja sujar as mãos, por gentileza. Tenha certeza que sua paga será generosa e justa, provocou Carlota.
Apressado, com o motorista do caminhão já empilhado na buzina do caminhão, Zuni, como era conhecido o rapaz da entrega, trocou o botijão, beijou rápido os lábios de Carlota e saiu apressado, tropeçando nos degraus e deixando escapar o botijão de gás vazio, que rolou por um declive para dentro da vala do esgoto. Apressado e aborrecido, bateu a porta do veículo e ordenou a partida. Quando retirou o botijão do lodo, o atirara e as luvas agora imundas sobre a carroçaria do transporte.
- Vamos embora, Doutor Pressa, essa foi a última entrega do dia, estamos feitos e eu cagado até os joelhos.



Capítulo 5

Sem o sol, a primeira hora da manhã é ainda mais escura que o comum dos dias daquele rigoroso inverno. Nuvens carregadas recortadas amiúde por coriscos e trovões. Ainda que longínquo, o ribombo faz tremer as carcomidas estruturas da antiga carceragem. E mesmo as almas de alguns apenados, acordados de chofre, ainda sem tino para o acontecido. O vento varre impiedoso e frio os corredores fracamente iluminados, balouçando lúgubres pêras incandescentes, bulbos pingentes do teto úmido por apenas fios coalhados de moscas. O lugar é malsão. Promotor celerado dos resfriado a gripes, estas a pneumonias muita vez severas comandantes de mortes rápidas. O ruído de ferro rolando na pedra apenas cimentada do lúgubre corredor sequer é percebido nas celas. O tranco compassado do pino torto da roda de uma maca carrega de estalidos os intervalos retumbantes. A 64 e a 62 são celas convenientemente esvaziadas de presos para obras inacabáveis, justificativas de pedidos sucessivos de material de construção à administração pública. Um outro corredor extenso e de mesmo modo parcamente iluminado, com ainda menos lâmpadas que a galeria principal, inicia à frente da cela 66, agora aberta, para onde a maca é empurrada com evidente contrariedade e contraditória pachorra por um sonolento gordo de roupa mal abotoada, a pança pontuda estrebuchando dos vãos entre casas do jaleco roto caído dos ombros estreitos feito disfarce de fantasma em festa infantil de assombração.
São exatas 6 horas.
Dali sai ensacado em plástico azulão fechado por cordas o corpo retesado do encarcerado que estrugira uivos lancinantes até três horas antes. Nenhum dos poucos presos já despertos vê mais que de esguelha, ou por espelhos colados em varetas feitas de antenas quebradas de automóveis espichadas para fora das grades, a muita distância, mais que a rápida transição de cinco metros da cela ao vão oculto pelas paredes. Desde a 66 para o inferno, sem escalas, dizem entre si os presos sempre que a cena se repete, porque o destino da maca deslizando o féretro improvisado entre as paredes é a enfermaria do lugar, que além de socorro urgente serve também de lugar para a acomodação temporária de cadáveres até a chegada da gente da Medicina Legal, que costuma “demorar além da conta”, como consta do terceiro relatório seguido da administração do presídio enviado por trimestre aos superiores hierárquicos da secretaria de Justiça. É que ali ficando, sem a devida atenção asséptica, para não imporem além da incômoda ocupação indevida de espaço dos ainda vivos, são levados à câmara fria do dispensário, enfiados de flanco na geladeira de seis portas, único recurso do lugar com temperatura achegada ao zero capaz de preservar os corpos da ruína irreversível.
“Morto está”, sentenciara o gordo enfermeiro em final de plantão de 24 horas, apalpadelas rápidas no pescoço sob o queixo e nos braços do corpo estirado no chão de pedra da fria cela. Último recurso, o estetoscópio sobre o peito à cata de batida cardíaca não encontrou ruído. O ribombar dos trovões cessara como a oferecer réquiem ao ligeiro diagnóstico. O silêncio tornara a azáfama funesta. Do que exatamente morrera o mais recente encarcerado da hospedaria do diabo, ainda não era possível saber. A inspeção ligeira do corpo não revelara ferimento de faca ou enforcamento, as causas mortes mais freqüentes no lugar, além da pneumonia, da tuberculose e das recorrentes assombrosas asfixias. Fora do ramerrão, as cuecas do homem apresentavam à frente e às costas minúsculas placas escuras endurecidas parecendo de sangue coagulado, única peça das vestes todas com aqueles sinais sabe-se lá quando produzidos, de que modo e por quem. A testa inchada denunciava as cabeçadas recentes dadas nas grades da cela, assim como as costas das duas mãos raspadas nas juntas dos dedos todas denunciavam ter ele esmurrado violentamente o concreto das paredes e do piso, o que se verificaria após exame do lugar com facilidade para encontrar vestígios da pele do homem. Quase se podia afirmar que estertorara em dor intrínseca, não do que doesse porque se debatesse.
O despertador da enfermaria disparou o alarme às 7h30min, mesma hora em que fenomenal aguaceiro desabava os céus sobre a carceragem e os sinistros portões de quatro metros de altura se abriam em par a dar entrada para o automóvel de transporte administrativo que trazia ao lugar o diretor do presídio, confirmando a ordinária programação de trabalho. O locutor de uma emissora de rádio dava o boletim meteorológico informando que a chuva iniciada há pouco poderia continuar por todo o dia e mais o próximo, que a temperatura ia baixar a próximo de zero, produzindo o fenômeno de variação de 30º graus em menos de 24 horas.
- Desliga essa merda aí, Pancrácio, é só notícia ruim que dá esse rádio, porra!
Lentamente, o motorista alcançou o painel do veículo com a mão direita enluvada e desligou suavemente o aparelho, conforme o comando espinafrado do chefe, sem qualquer comentário. Antes de retornar a mão ao volante, acertou o quepe e alisou o nó da gravata de modo também autômato.


Capítulo 6

Apolo Zuni retornou à casa de Carlota à noite, sob aguaceiro descomunal. Ao chamá-la do portão tosco da pequena morada, estranhou que ouvisse a própria voz à porta da mulher. Não pensara em retornar ali tão cedo, ainda que a suspeita de que fosse mesmo pai do Piá não o abandonasse há bom tempo mais que por uma semana, aquelas em que a entrega de gás não subia o morro.
Uma réstia de luz mortiça projetou-se no acanhado alpendre desde o interior da casa, iluminando fracamente o perfil de Carlota convocando o moço encharcado a entrar. Zuni fechou a pequena sombrinha que tomara emprestado da própria Carlota em uma outra noite e a pendurou pingando num gancho na parede externa da casa. Sacudiu forte a capa de plástico azul uniforme da empresa distribuidora de gás e a transformou rápido numa pequena bola empapada, que enfiou num saco da mesma cor retirado do bolso de trás das calças de brim.
- Tiro as botas?
- Não carece, o assoalho está uma lagoa mesmo. Entra. Rápido que a ventania pode resfriar as crianças. Recém dormiram, as espoletas.
Carlota respondia e já o puxava carinhosa, com a mãozinha de unhas pintadas em vermelho vivo espalmada à nuca do homem. Para completar o gesto, mignon que era de porte, Carlota ficava à ponta dos pezinhos, uma bailarina em demi, quase voando. Era por essa razão que sempre retornava ali, explicava-se em pensamentos o homem já embevecido com o gentil e fino trato que lhe dispensava Carlota.

Aos 13 anos Carlota engravidara de um namoro que logo se desfez, razão porque abandonou a escola de balé em que dançava desde os sete. A família quisera o aborto. Ela rechaçou, afrontou. Foi mandada para a casa de parentes no interior, onde ganhou Zelito e ficou lavando roupas para fora apenas até juntar dinheiro que lhe pagasse a passagem e um mês de estadia numa pensão que localizou por jornal. Chegou na cidade com a roupa do corpo, mais duas de muda e uma sacola fedendo à fralda cagada, do que se desculpou de pronto com a dona da pensão.
- Isso é só por causa da viagem que foi longa, eu cuido bem das roupas, sei lavar muito bem, se a senhora precisar, inclusive lavo as daqui e cobro metade, bem baratinho.
- Não carece, mocinha. Sei bem qual tua necessidade. Eu mesma já passei por isso. Vá entrando e depois nos entendemos. Teu quarto é aquele...
A mulher parecia de há muito dela conhecida. Afável, falava baixinho, gesticulando largo, mostrando cozinha, sanitário, pátio, tanque e uma ampla sala onde ficava a maior mesa que Carlota já vira até aquele dia. Dava bem umas 30 pessoas sentadas ao mesmo tempo. O “pensionato familiar só para moças” , como se lia na tabuleta à porta, acabava de receber a décima terceira pensionista. O neném não contava como hóspede, assim como os pequenos filhos de outras sete hospedadas ali também não, fossem meninos ou meninas, que podiam ficar com as mães até com 12 anos de idade, explicava um pequeno folheto que a dona da pensão passara a Carlota para “leitura com atenção”.

Apolo Zuni espreguiçava-se no apertado reservado improvisado por Carlota para separá-los das crianças na cama única da pequena família.
- Cama de trinca, que aqui não tem casal, brincava a mulher, zombando de si mesma pelas condições precárias em que sobrevivia.
O amor feito em silêncio deixara marcas nítidas em lençóis amarfanhados e denso cheiro de sexo mesclado à lavanda mentolada dele e ao toque de amor de florais dela. Aproveitando o que lhe pareceu ser o melhor momento para tanto, Apolo disparou a pergunta que lhe martelava a cabeça semana sim, semana não:
- O Piá é meu filho, Carlota?
Sem piscar, nem mover músculo da face, apenas tremendo levemente um dos pés expostos para fora do lençol que lhe recobria o corpo alvo e desnudo, a unha vermelho vivo faiscando reflexos da tênue luminosidade da pequena lâmpada de abajur, Carlota replicou em tom de voz frio, grave, quase soturno:
- Sim, Apolo, o Piá, o Zelito, os trigêmeos da vizinha aí da frente e a puta que foi parida pela macega também. Te manda daqui, merda! Tá me tirando pra zona! Pega teus brinquedinhos e salta fora!
A fúria não alterou o tom da voz de Carlota, que era baixo por causa das crianças a dormir, mas também porque vizinhos dela adoravam saber do que se passava na casinhola para levar à feira. A força do braço que empurrou o homem para fora da cama no rumo da porta, no entanto, parecia de quem carrega mais que botijão de gás, isso Apolo Zuni percebeu. Sentiu e apressado juntou peças de roupa no chão, vestindo-se rápido porque aquele surto de Carlota ele já sofrera outra vez e não queria provar de novo. Quando ia trancando a porta, o homem já fora da casa desembrulhando a capa plástica para se abrigar da chuvarada, a mulher falou à guisa de despedida:
- Não vai cair na merda outra vez, ô tanso!



Capítulo 7

- A senhora tem certeza de que não é trabalho, dona Ofelina? É possível que volte só no domingo pela manhã, mesmo. A gente nunca sabe. Depois de tanto tempo, nem sei o que se faz mais em festa...
- Que trabalho que nada, Carlota, o Zelito é um mimo de criança. Fica tranqüila e vê se te diverte um pouco, que só ralar embrutece a alma. Vê se arranja um namorado firme, bonitão e trás ele aqui pra gente conhecer.

A mofa da vizinha tentava desanuviar a tensão que percebia em Carlota, enfiada numa saia tão justa e curta que lhe deixava o par de coxas bronzeado quase todo à mostra. Era uma mini-saia em brim lavado azul, que fez combinar com uma blusinha vermelha esvoaçando solta desde as alças fechadas em laços quase infantis sobre os ombros nus de um moreno conquistado ao sol no tanque de lavar e no estender as roupas no varal ou no quarador. Dali só as tirava ao cair da tarde de todo o dia em que não chovesse.
- Então, desde já fico agradecida e lhe devendo um presente. E tu, guri, cuida da dona Ofelina pra mamãe que já volto, tá bem?
Beijou e abraçou o menino, tapinha na própria testa a dizer que estaria pensando nele, dois beijos de comadre na vizinha e uma rápida volta sobre os calcanhares que fez os sapatos de tênis rangerem no assoalho do alpendre e as duas mulheres e a criança rirem do fato, antes de abanarem-se às mãos em despedida.

Desceu rápido as ruelas do morro, quase todas vazias de adultos àquela hora de início de tarde da sexta-feira feriado ao encontro da turma de meninas da Avenida, que haviam todas combinado de irem juntas ao parque de diversões. Ela não estranhara o convite das adolescentes, embora já com filho e já aos 19 anos, por saber que a consideravam menina, mais por pequenina que por de fato. E, também, por acompanhar à risca a moda da juventude, que conhecia até pelo avesso.
A maioria das jovens da turma era de famílias para quem Carlota lavava e passava trouxas e trouxas de roupa há já quase cinco anos, desde que deixara a pensão em que se alojara ao chegar à cidade e mudara-se para a casinha construída numa ponta de terreno cedida a ela pela futura vizinha Ofelina no cume do morro em que foi morar. Conhecera Ofelina de uma vez que foi à 13ª Delegacia procurar informações de como fazer carteira de identidade. Conversaram sobre outras coisas, caíra nas graças da funcionária, que passou a visitar com alguma regularidade no trabalho e mesmo em casa, em fins de semana, para espairecer do clima pesado da pensão, lugar em que “problema pouco e pequeno era coisa rara”, como costumava repetir para a amiga.
- Eu mesma fiz a casa! – jactava-se Carlota.
E a verdade é que a fizera mesmo, em parte ajudada por dois moleques do beco, que subiam os caibros e as folhas de zinco por cordas para o oitão e o telhado. O resto foi tábua e prego, prego e tábua, depois tinta, tinta e tinta, já no último mês do ano que a obra durou. Certo que os alicerces e o conjunto de alvenaria para banheiro e cozinha ela contratou de um pedreiro dali mesmo, que o fez em um sem número de fins de sábados em que não tinha bicos fora do morro. E tudo em troca de um bom chimarrão cevado a capricho, uma rapadura puxa que ela assegurava ser da colônia e, ele muito agradecido a isso, pela roupa sempre bem lavada e passada.

Carlota começava a duvidar ter sido boa idéia aceitar a coação da turma animada para a reunião-dançante após à tarde de domingo no parque com todos aqueles rapazes que se enrabicharam nelas há primeira hora que chegaram ao lugar. Elas todas em mini-saias, tubinhos justos, shortinhos, blusinhas tomara-que-caia transparentes e até camisetas pintadas em casa com desenhos originais resultantes de amarras de cordões enfiadas em baldes de tintas corantes, do tipo daquela do artista do filme de música que ela adorara ter visto e se apaixonara pelo descabelado. Os pés em sapatos de tênis ou sandálias de couro e mesmo de borracha para enfrentar o calor de mais de 30 graus que dera folga ao inverno já quase primavera.
Um loirinho miúdo se arranjou de par e, toda vez que olhava para ele, onde fosse, nos brinquedos ou num banco do parque, estava de olhos encravados nas coxas dela.
- Nunca viu perna de mulher, ô tarado!
O rapaz ficara tão rubro como a blusa dela em conseqüência da chacota súbita. Sem ligar para o acanhamento dele, ela o convidou para andarem juntos na montanha-russa. Santo remédio. Ele cerrou o semblante em quase pânico. Ela viu-se livre do olhar concupiscente dele pela primeira vez. E para o resto da tarde. Por muito pouco não retorna para casa mais cedo e dá fim à festa, quando ele, enjoado e aliviado do medo do brinquedo, vomitou a seus pés na saída da montanha russa. Carlota alcançou-lhe um lenço mínimo que catou numa bolsinha de crochê já um pouco marcado de batom vermelho. Deu-lhe as costas para não pejar ainda mais o moço estremecido. Condoeu-se, mas ria para si mesma da fragilidade outra vez confirmada por aquele candidato a seu par.
Eunício, era o nome todo do Nisso, como os demais da turma de rapazes o chamavam. Não tinha ainda 18 anos, não prestara serviço militar, estava no segundo Científico. Nascido e criado na Capital, sempre morou na Zona Norte, em um casarão de quadra e meia da Chácara dos Bento, na Estrada da Pedreira. Quase um depoimento formal, essa última fala apressada do rapaz a fez parar o questionário, um rosário banal de prestação de contas de onde estudas, já trabalhas, onde moras, de que gostas, sabes dançar, jogas bola, tens namorada, vens sempre aqui...
A música que os dois dançavam, já as mãos dele à cintura dela, as dela à nuca dele, os rostos colados ainda que o suor porejasse das frontes, as pernas de ambos amassando umas às outras, roçando leve de quando em vez as pélvis, cessou para ela, embora ambos continuassem a rodar suavemente, cobrindo a extensão da sala, os passos guiados firmes por Nisso, que a conduzia leve tal um mestre-sala, do que ela muito gostara. A memória dela desandou em turbilhão, como uma fita desenrolada de carretel na matinê, à menção dos nomes familiares do bairro onde também ela nascera: Chácara dos Bento, Estrada da Pedreira... Para todas as pessoas que conheciam Carlota adulta isso era um segredo.

Capítulo 8

Aquela era uma cena cotidiana, fosse quem o plantonista da emergência da enfermaria do estado-maior-de-grades: o diretor sentado à mesa tipo escrivaninha, ainda de chapéu, de costas para a porta de entrada da sala, como a contemplar o nada numa parede lisa sem um quadro à frente, ouvia o relato das ocorrências do setor, por cinco minutos, às 7h45min. Fazia o aceno frouxo com a mão direita como o dar até logo a pessoas apenas conhecidas ou para intervalos breves de ausência já de frente para o destino. E não usava ter quadros na parede às costas de si, como explicava a quem sugerisse enfeitar a sala, como uma ou duas secretarias mais animadas já lhe haviam sugerido, para “não perder de vista a olhada do comparte e não dar motivo de abstraimento, que isso aqui não é recinto de convescote, é sítio de afazeres.”
Naquele dia, no entanto, após ouvir o relato, não dispensou o interlocutor, parado às costas do espaldar da cadeira de couro preta que dissimulava os seus quase dois metros de altura e, principalmente, a largura estranha dos ombros em relação ao peso, muito estreita para o conjunto, como a formar a figura de um losango.
- Com o que, então, senhor doutor plantonista, morreu um homem de não sei o quê ainda e guardamos o cadáver na geladeira junto às comidas frescas de nós todos? E se a peste se espalha por ali, e a levamos paras nossos filhinhos e amadas esposas em nossas casas e esses levam às escolas e essas levam aos mercados e feira esse tal de não sei o quê de quem nos fala sua eminência?
- Mas... Mas... Deixar que ficasse fora do gelo não ia dar na mesma e mais rápido e já na teria isso tudo acontecido se o homem entrou aqui e respirou conosco desde o meio-dia de ontem, senhor?
- A razão está contigo. Vai e apressa a Medicina Legal para vir recolher o presunto que disputa o espaço no gelo com a nossa merenda. Vá depressa, homem. Vá, logo!
O enfermeiro já fizera o recomendado. Há meia hora encomendara o serviço aos colegas, que se comprometeram a buscar o corpo do morto da 66 no presídio ainda pela manhã. Não disse ao diretor para não parecer provocação e supunha que, sendo parte da rotina, ficasse em surdina o tema, a sensação de que a providência tomada deixasse as coisas no lugar e se impusesse como fato à compreensão de todos.
A suposição durou poucos segundos, a extensão do percurso no tapete marrom escuro, um trilho claro ao centro resultado do tempo de uso, disposto da pesada mesa de madeira-de-lei escura à parede clara, a alvenaria repintada de bege, ou pérola, “essa cor meio suspeita que vocês aviaram para minha sala” , como o diretor havia reclamado ao mestre-de-obras na oportunidade da última reforma do lugar, há já uns cinco anos. Reclamação apenas para constar, que as tintas estavam já compradas e na medida exata do para cada qual, sem volta que não durasse pelo menos um exercício orçamentário e mais um processo inteiro sobre os porquês da recusa.
Girando a poltrona, que gemeu nas molas e suportes como um gato pisado no rabo, o diretor interrompeu a saída do enfermeiro já meio corpo fora da porta com nova argüição, essa parecendo completamente estranha aos fatos corriqueiros daquele expediente e às formalidades do ambiente:
- Pode-se saber por que o vivente sabe tudo das cuecas do morto?
- Tudo é muita gentileza de vossa senhoria. Sei o que vi e talvez pouco menos do que vi, que as lâmpadas continuam queimadas, muitas, e a luminosidade escassa pode produzir efeitos que só as sombras explicam. E a regra é tirar o uniforme do preso morto para aproveitamento futuro se não há sujidades e furo de bala ou faca. O uniforme está intacto, pronto pra reuso e não é prova de crime algum, sem pólvora ou mancha de sangue. Não é do senhor mesmo a instrução?
- Novamente a razão lhe emprenha, considerado, vá fazer o que tens feito. E avisa-me da chegada dos colegas da Legal, que o circuito interno de tevê pifou de novo e não se vê daqui mais o portão da entrada principal. Pode ser?
O gordo abanou com a cabeça lentamente em sinal de afirmação e saiu ruminando a idéia de uma jornada estendida até um talvez que só dependia de colegas de outra seção. “Membros de fora atacam novamente”, era a expressão cunhada para ocasiões do tipo.


De que morrera o homem trazido para ali há apenas 24 horas em perfeito estado físico atestado no ingresso embora a aparência óbvia de pacóvio era pergunta suspensa em inextrincável silêncio. O rabecão chegara ao presídio às 13h39min. Cheguêva acompanhava a equipe da Medicina Legal. Fizera o mesmo trajeto na véspera, à mesma hora, com o atoleimado prisioneiro, capturado após uma bebedeira no Bailão do Ricomota, em que se jactava de estar livre tendo feito o que fez. Contava pela terceira vez a mesma história no balcão, entre goles traçados de cachaça e cerveja.
A rotina do inspetor Valafora, de ronda a botecos, boates e congêneres o levara a dar com os costados no Ricomota, lugar em que encontrou pela segunda vez em apenas uma semana com o homem que nunca vira antes, o que lhe dera conselhos de como dirigir a camioneta para vencer a lomba escorregadia do Morro Carlota do Piá.
- Pois o amigo não quer contar essa história para mais gente, num lugar mais sossegado? Eu tenho uma prima bonita que gostaria muito de ouvir isso de que tanto gostas de falar, queira acompanhar-me.
A reação do homem ao perceber que estava sendo detido por polícia foi de fuga imediata. Tentou correr. Derrubou cadeiras, atropelou pessoas. Jogou um casal que rodopiava no salão para cima de uma mesa repleta de garrafas de cerveja recém dispostas pelo garçom à freguesia, meia-dúzia de homens aparentemente estivadores da Mercante. O resultado não poderia ser pior para ele. Parado à porta pelo segurança do lugar, um sujeito mais alto que ele quase um metro e largo como o vão de saída, os seis que lhe iam ao encalço após o estrago à mesa só pararam de afofar-lhe os músculos e ossos a socos e pontapés ao comando de Valafora:
- É a Polícia! Deixem o homem comigo que ele tem mais contas a pagar que meia-dúzia de cervejas.

À frente da escrivaninha do diretor do presídio Cheguêva sentia o mesmo incômodo de muitos que ali estiveram antes a falar com as costas do espaldar da poltrona. Via apenas a careca luzidia do homem e o adivinhava alto em razão do espaço que ocupava o corpo do assento ao espaldar, coisa de mais de metro. Somando as pernas, pensava, poderia o careca ter até dois metros de altura.
- Com o que, então, senhor diretor, o morto de não sei o quê apresenta ferimento algum de bala, nem de faca, não tem marca de estrangulamento, tá de pescoço e lombo lisos e só abrolha alguma alusão a sangue nas cuecas maculadas?
- como de fato é mesmo, senhor inspetor, e estamos aqui no aguardo de que nos digam lá, da Medicina Legal, o que se passou na travessia do de cujus dessa para outra instância. E nos faça o favor de mandar informação breve porque a cela 66 é de passagem e, com a reforma em andamento, não temos outra para abrigar seus convidados eventuais que ainda não acertaram os saldos com os juízos da lei. E vá que nos traga vossa senhoria um outro hóspede antes de concluir a desmontagem da cena. Temos mais o que nos dizer?
O trato polido era demasiado aparente para policiais de carreira que há muito se conheciam. Por alguma razão, pensava Cheguêva, já dando volta aos calcanhares, tendo pegado os papéis que o diretor lhe alcançara assinando a liberação do corpo para transporte ao Instituto Médico Legal, o homem está indisposto com a função.
Há cinco anos, o diretor era Chefe da Polícia Metropolitana. Substituído do cargo numa dessas trocas de governo, a confraria dissolvida por mortes variadas de motivos diversos e aposentadoria compulsória, entre motivos outros, restou-lhe a exoneração do quadro ou a direção do presídio, que só aceitou, contava-se à boca pequena, porque carecia dos proventos aumentados posto que dilapidara as posses todas no carteado e na roleta, nas rinhas de galo e cachorro, jogatinas que protegia sob o manto da inação e dos grossos óculos escuros, mas que não lhe garantia vitória contra o azar. Quando a propina deixou de pingar, foi-se o boi com corda ao brejo em que a vaca já se encontrava. Era o que supunha o inspetor, colega que fora do atual diretor do presídio na Central. O próprio Cheguêva é remanejado para “delegacia de confins sem meios”, como diziam dos locais afastados em que o patrimônio ou caía aos pedaços ou andava empurrado. Sorte, diziam, que ainda havia munição para revólver, pois as escopetas desembaladas eram só ameaço e cagaço. Seguidamente davam retorno vexatório a perseguições não organizadas em batidas por falta de munição para confrontar metralhadoras automáticas portáteis que a bandidagem já comprava de quartéis daqui e de contrabando.
- Uma boa tarde para o senhor também, retribuiu secamente ao cumprimento o diretor, sem o aceno de mão, posto que estava de frente, mas com o usual ar de enfado aumentado pelo humor pouco e a depressão daquele dia ainda chuvoso e cada vez mais frio.
- Peço para ligar o ar-condicionado na saída se o senhor não se importar. Essa gente miúda sempre esquece os detalhes mais comuns, disse Cheguêva, sarcástico e sabedor de que não havia aparelho de ar-condicionado no presídio, batendo a porta sem aguardar a explosão de raiva do ex-todo-poderoso colega.

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