sábado, 14 de março de 2009

ÚLTIMA CEIA

O rubro intenso e tépido da vida
Umedece as pétalas fendidas
As últimas lágrimas gotejantes
Maculando a brancura da tez
Sonhos interrompidos pelo fim
Os olhos vidrados sem ver
Lábios ainda descerrados
A espera do beijo mais ardente
Um último beijo de amor
Beijo que não se fez real
Beijo que lhe roubou a alma
Tornando-a cadáver silente
Corpo sem sopro divino
Um invólucro vazio... indene...


O algoz ainda a fita com pavor
Seu peito arfa com selvageria
O liquido viscoso preso aos lábios
Gotejando em sua veste imaculada
Tornando seu viver desgraçado
Fazendo-o maldizer sua sina
Este monstro desprovido de alma
Que perambula pelas noites
Caçando como um animal
Procurando fugir à angústia
Mas que sabe ser o vilão
Conhece-se muito profundamente
E sabe que não pode furtar-se
À união com a morte... sempre...


Aquela que pende em seus barcos
Entregou-lhe a confiança
Colocou-se sob sua proteção
Amante em sua plenitude juvenil
Conferiu crédito à sua paixão
Agora jaz destituída de calor
Pende como fazenda ressecada
Como uma árvore sem seiva
Translúcida em seu momento
Apagada em seu sentimento
Tornada sombra espectral
Apenas por ser crente
Ou por ter-se tornado escrava
De um ser maldito... sedento...


Os pequenos furos em seu pescoço
Registram a pressão determinante
A região onde o ocaso ocorreu
O ponto da atração maior
Quando ela acreditava ser outra
Parte que atraíra sua atenção.
Os lábios carnudos e sensuais
Os seios avantajados e firmes
As pernas grossas e roliças
O traseiro volumoso e chamativo
O corpo precariamente vestido
Nada disto chegou a interessar
O faro da besta tinha outro desejo
O som da vida a viajar pelas veias
O odor do néctar ainda oculto
A sede infinita queimando a garganta
O instinto do predador... desespero...


Nada disto mais tem sentido
A morte aguarda pelo abandono
Que colherá a falecida
O predador não retém a presa
Vomitada a acidez de seu fel
Saciada sua insana necessidade
Lega o corpo ao tempo
Deixa-o ao relento insensível
Não é sua tarefa o prantear
Os cuidados fúnebres em questão
Ele cumpre sua desdita sorte
Logra o mal que propaga
Esconde-se na sombra do dia
Mortifica-se em seu temor... prisioneiro...


Sarcasticamente sorri do destino
Recusa-se a concluir o serviço
Ainda sente um débil suspirar
Os lábios trêmulos imploram
Pelo beijo salvador
Pelo sopro da continuidade
Há mais nesta vida cessante
Que sua própria existência
Que sua maldita solidão
Algo que grita em seu âmago
Algo que o fere no vácuo
Deixado pela perdida alma
Nascido da venda contratada
Algo que o impele ao inferno
Algo que repele a morte
Um sentir sem dor... ternura...


Sem abandonar o corpo inerte
Solta-se em voar dolente
Conhece a verdade obscurecida
Almeja a fonte ainda existente
Em lugar remoto e desconhecido
Onde poderá devolver a vida
Aquela que lhe conquistou
Aquela que tem em seus braços
Aquela que rompeu os grilhões
Quebrou a cadeia das provações
Permitiu-lhe sentir a brisa
O abarco senil da liberdade
A esperança de poder vencer
A cruel perversão de sua humanidade
A queda sem fim... tragédia...


O campo estende-se além da visão
As robustas árvores protegem
Ainda acredita ser possível
Chegar ao templo do perdão
O medo de ser muito tarde
Não incide sobre sua vontade
O sobrevôo é tão intenso
Que novos sussurros se ouvem
Ah, quanta insanidade num ato!
Que instinto é este que o torna
Caçador errante da imortalidade?
Um lampejo incerto o traz ao presente
Uma frágil imagem refletida no escuro
Será o espelho fluente da vida?
Sente o odor insípido do líquido
A unção é permitida... vencerá???


Lentamente conduz sua vítima
Caminha sobre o leito plácido
Não há resistência a sua invasão
Seus passos os levam ao centro
O frio assoma seu corpo
A silhueta alva e sem vida
Desliza de seus braços
Submerge no manto sereno
Ele agita-se e urra em desespero
Mito! A maldita fonte não é real!
A dor consome suas forças
Lágrimas de arrependimento
Soluços de agonia mortal
A razão sucumbe à dor
Que valia teria prosseguir?
Num assomo de loucura
Lança-se atrás da defunta
Sente que o gelo o sufoca
Sem conseguir respirar, afoga
A morte enfim... docilidade...


Em segundos o silêncio... o nada!


O absoluto não ser... não existir
Tão somente a paz... a liberdade
Não sente mais sede... saciado
Somente o desespero prevalece
A noite ainda é senhora inconteste
A solidão ainda domina seu ser
Mas seus olhos já divisam
As cores antes negadas... apagadas
O ensejo final é só seu... opção
Tudo o mais inexiste no momento
Um inexistir pleno de nexo
Não mais sede da seiva vital
Apenas o instinto da perpetuação
O apelo mais forte do sexo...


A bruma que envolveu seus sentidos
Perde-se na Constância da razão
O momento fatal foi detido
A mordida crucial ainda espera
A vida torna a pulsar com vigor
Olhos perdidos na inconsciência
Furor mais forte da masculinidade
O homem supera a fera
A mulher vence a besta
A sede infinita concede uma trégua
Agora impera o desejo do corpo
O apelo das carnes em fogo
A sofreguidão das libidos
A excitação... o desejo... o tesão...

Os lábios comprimidos em refrega
As mãos delirantes em compassos
Vorazes instrumentos da fome
Tenazes guerreiros da sexualidade
As presas são retraídas... suavizadas
As garras tornadas ternas lâminas
O calor consome as diferenças
Une os fluídos vivificantes
Sem vítima ou predador
Sem algoz ou perdedor
Sem derrotados... sem profanadores...
Os mais secretos ritos... coito...


Mas um riso irônico soergue do tesão
A vítima contempla o predador
Sua mão vil e certeira
Empunha a arma vingadora
No auge do ritual da comunhão
A madeira escura seguiu o vinco
Indiferente ao clamor da carne
Penetrou, o peito, sem piedade
Aquele que deveria ser o matador
Sente o abraço da morte
A estaca afunda-se em seu coração
O ar escapa-lhe pela faringe
As vistas rendem-se à penumbra
O fim está próximo... desistência...


Em uma rua deserta e escura
Sob o açoite do vento gélido
Um corpo jogado ao chão
O sangue vazando descontrolado
Os olhos vazios ainda abertos
A boca vincada em um esgar
As presas brilhando num negar
O predador abatido pela paixão
Vencido pelo ardil mais antigo
Sucumbe ao capricho da fragilidade
Perde-se nos braços da fêmea
Quanta ironia em sua morte
Assolado pela recriminação
Desiste de saciar sua sede
Decide viver a conjunção
Mas esqueceu-se da fúria
Do ódio mortal da humanidade
Olvidou sua condição de maldito
Tornando-se vítima da feminilidade...

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