quarta-feira, 14 de outubro de 2009

FANTASMA

(autor: Darkness)
A densa névoa noturna intensifica a sensação de desconforto que domina o íntimo do solitário transeunte. A umidade produzida pelo nevoeiro causa-lhe tremores, mas não é suficiente para que ele desista de sua jornada.
Após meses de inatividade, aquela vaga pareceu ser sua salvação. Mesmo considerando-se o fator inusitado da ocupação, ele sentiu-se feliz por ter conseguido aquele emprego. Era uma função que não exigia muitos conhecimentos, apenas vigilância e paciência.
Seus passos avançavam lentamente pelas alamedas entrecortadas por construções de apurado senso artístico e frondosas árvores. Silhuetas sólidas contrapunham-se aos tênues raios de luar que conseguiam romper a densa camada de névoa e poluição que cobriam a noite.
Onde apenas o silêncio e a solidão deveriam reinar, ele sentia como se estivesse preste a mergulhar em um ambiente tumultuado ocupado pelos mais estranhos seres. Sua imaginação o levava a ver sombras voláteis a emergirem de qualquer espaço que se mostrasse fora do foco de seu olhar. Por diversas vezes pareceu-lhe soarem risos e gemidos acompanhados por passos acelerados.
Não era desconhecido que vândalos e desocupados estivesse acostumados a penetrar aquele terreno, mas considerou que, a partir do momento de sua contratação, não ocorreriam mais invasões. Tudo indicava que estava enganado, os ruídos persistiam e sua atenção foi redobrada.
Depois de ter avançado além da metade do terreno, sentiu um frio diferente assomar sua espinha fazendo suas entranhas se revirarem. Não era uma noite de verão, mas o inverno nunca fora tão rigoroso na região. Verificou se seu casaco estava totalmente fechado, ajeitou o gorro com mais cuidado e prosseguiu em sua vigia.
Um uivo longo e angustiado o fez deter-se instantaneamente. Fosse o que fosse, não era nenhum fenômeno natural, não existiam lobos na região e os cachorros não costumavam uivar de modo tão lancinante. O bater de seu coração acelerou-se, sua boca tornou-se ressecada e amarga, seus olhos evitavam voltarem-se na direção de onde um sussurro abafado começava a se fazer notar.

-- O homenzinho está com medo. Sussurrou uma voz feminina, mas de timbre infantil.
-- Deixe-o em paz. Ele está tentando ganhar seu sustento. A segunda voz era mais grave e adulta.
-- Podemos convidá-lo para nos acompanhar.
-- Não seja tola, ele não pode nos ver.
-- Mas pode nos ouvir.
-- Também não.
-- Pode sim. Ele está ali, olha, parado.

Sujeitos atrevidos, pensou. Além de invadirem o espaço que era sua responsabilidade, ainda ousavam desafiá-lo. Não podia deixar passar batido, mesmo que fossem crianças brincando de modo tão estúpido, precisava tomar providências.

-- Sejam quem for, saiam agora! Ordenou tentando manter a voz firme.

Um riso contido foi a resposta ao seu comando. Os gaiatos estavam mesmo se divertindo as suas custas. Malditos adolescentes, resmungou entre os dentes. Sem esperar por uma reação mais direta, direcionou seus passos para o local onde os pestinhas deveriam estar escondidos.

-- Seus pestinhas miseráveis, quando puser minhas mãos...

Nada! Não havia ninguém ali. Os danados haviam sido mais espertos e fugiram antes que ele tivesse chegado ate o local. Maldisse sua lentidão. Mesmo tendo a certeza de que não encontraria ninguém, apontou o facho da lanterna para as sombras e vasculhou uma área considerável do espaço a sua frente.
Dessa vez o riso foi mais forte. Soou quase que como uma gargalhada divertida. Os malditos estavam zombando de sua incapacidade física. Ajeitou o gorro mais uma vez, puxou as calças mais para cima e levantou a perna esquerda para avançar pela escuridão.

-- Não vai nos achar, não vai não! Soou a voz infantil.
-- Para com isso! Não podemos interagir com eles.
-- Por que não? Já estivemos assim antes!
-- Mas não estamos mais. Eles não devem ser incomodados.
-- Não estou incomodando ninguém, só quero conversar.
-- Pode conversar comigo.
-- Ah, é muito chato. Estamos conversando há tanto tempo...
-- Quer dizer que sou chato.
-- Não foi isso que quis dizer.
-- Mas foi o que disse.
--Não, não foi.

A incipiente discussão o deixou mais enfurecido. Apesar de ouvi-los, ainda não conseguia vê-los e, pelo modo como conversavam, não davam a mínima para ele. Ser ignorado pelas pessoas era um fato tão normal em sua existência que ele começava a sentir-se como um fantasma.

-- Oi! A voz feminina havia desistido da discussão e o interpela cordialmente.
-- Ele não pode nos ver! Zangou-se aquele que a acompanhava.
-- Mas pode nos ouvir.
-- Querem parar com esta discussão imbecil e se explicarem!
-- Não precisa ficar zangado. Só estamos querendo conversar.
-- Fale por você.
-- Não liga para ele, às vezes ele fica meio ranzinza, mas na maior parte do tempo ele é legal.
-- Quem são você?
-- Eu sou Mirian e ele é o Zack.
-- Quantos anos vocês tem?
-- Isso importa?
-- Não é hora nem lugar para crianças estarem.
-- Não temos mais para onde ir.
-- Como assim?
-- Nós fugimos de casa.
-- Crianças doidas! Como podem preferir a rua a uma cama quentinha?
-- Diz isso por que não sabe como era lá onde morávamos.
-- Não deveria ser pior do que ficar por aí sem te ro que comer ou beber, ou mesmo onde dormir.
-- Era muito pior!
-- Sei.

Por uns minutos o silêncio imperou. Apenas o vento ainda soprava e se fazia ouvir.

-- Devo estar ficando maluco. Ouvindo vozes do nada e conversando com ninguém. Se me pegam de prosa com o vento, perco meu emprego.
-- Não precisa se preocupar, podemos ver quando alguém se aproxima.
-- Que diabos! Assustou-se. Por que insistem em ficar matraqueando em minha cabeça?
-- Hei, não me envolva em nada. Eu estou quieto em meu canto.
-- Não gosta de conversar com a gente?
-- Conversar! Como posso estar conversando com pessoas a quem não posso enxergar? Tudo isso só pode ser um delírio!
-- Mas não nos vê porque não quer. Estamos bem aqui.
-- É claro que estão! Além de maluco devo ter ficado cego.
-- Não ficou maluco nem cego. Por que é tão difícil acreditar que estamos aqui?
-- Vai ver seja porque não posso vê-los! Ironizou de modo agressivo.
-- Se pudesse nos ver, iria acreditar?
-- Posso acreditar em tudo que consiga ver.
-- Mas seus olhos podem lhe enganar.
-- Nunca aconteceu antes.
-- Mas eles podem.
-- Não venha com essa conversa sem sentido. Como posso enganar-me com aquilo que vejo?
-- Os olhos costumam refletir aquilo que queremos ver, não aquilo que realmente vemos.
-- Absurdo! Estou mesmo maluco, onde já se viu discutir sobre a veracidade daquilo que vejo com duas crianças que nem mesmo posso ver!
-- Não somos, assim, tão crianças. Já tenho doze e meu amigo dezesseis.
-- Ah, sim, estou diante de dois adultos muito ajuizados! Aposto que não conseguem nem mesmo limpar os próprios traseiros!
-- Que grosseria! Não deveria falar assim diante de pessoas tão jovens ainda mais quando uma delas é uma menina! O rapaz, que até então tinha se mantido quieto, protestou.
-- Desculpem-me!
-- Foi engraçado! Riu a menina.
-- Não é nada engraçado quando faltamos com o respeito para com alguém. Ralhou o rapaz.
-- Tudo bem, ele não quis nos ofender.
-- Mas ofendeu!
-- Ah, já ouvi você despejar muito mais sujeira do que essa.
-- É diferente!
-- Não é não!
-- Podem parar com essa discussão infantil? Por que não desistem de me aborrecer e voltam para suas casas?
-- Não temos mais casas! A exasperação da menina foi autentica demais para que ele julgasse ser apenas a expressão teimosa de uma criança.
-- Está bem, digamos que não tenham mais para onde ir, por que tiveram que vir justamente para cá?
-- Onde mais poderíamos nos sentir protegidos?

continua AQUI

Um comentário:

MPadilha disse...

Meu amigo sempre presente, muito bom teu texto. Estou precisando falar com vc, como faço?