quinta-feira, 12 de novembro de 2009

VOZ DA BESTA - CONTO COMPLETO


Nota da autora: Resolvi postar novamente a primeira parte do conto junto com o fim, desta forma quem não leu a primeira parte, pois já faz um mês, pode ler inteiro agora, o que dá também mais impacto ao texto. Obrigada. Ana Kaya.

VOZ DA BESTA parte I

Eu durmo com meus olhos abertos. Meus ouvidos captam o menor som e eu acordo. Se o ar se move delicadamente sobre os pelos de meu corpo, eu saberei que existe uma criatura viva perto de mim. Cheiros de animais trazidos pelo vento podem encontrar-me mesmo estando centenas de quilômetros longe de mim.
Você tem medo da escuridão? Você está certo em temer. Vivemos na escuridão e lá fazemos nosso trabalho. Pode ter certeza que queremos apenas o que é mal. Apenas o que pode te machucar.
Quando estiver se sentindo fraco, nós saberemos. Então nós te olharemos enquanto dorme, esperando pela hora quando poderemos trazê-lo para dentro da nossa escuridão.
Á noite, falamos com você e te chamamos a juntar-se a nós. A batida na porta que te acorda durante a madrugada – isto é um de nós, vindo para convidá-lo a viver uma vida morta. Não ouça. Feche os olhos, se quiser escapar vivo.
Nós sempre estivemos aqui. Estávamos aqui desde o início dos tempos.
Muitas centenas de anos atrás as pessoas comiam com os deuses. Naquele tempo, na Grécia, existiu um homem chamado Lykaon. Nas estórias gregas, Lykaon era o filho do primeiro homem na Terra. Ele era o rei das pessoas que viviam nas montanhas de Arcádia. Mas Lykaon era um homem que fez coisas más, e um dia o deus Zeus ouviu sobre estas coisas. Então o visitou de surpresa. Lykaon matou uma criança e a deu a Zeus para comer. Zeus estava tão furioso que transformou Lykaon num lobo. Ele teve que deixar sua família e as pessoas, e viver nas florestas consigo mesmo.
Ele era metade homem e metade lobo.
Os filhos de Lykaon, meus irmãos e eu temos estado na Terra desde então. Mas deixamos Arcádia e viajamos o mundo. Cada um de nós se desgarrou e continuou sozinho. Vivemos escondidos em diferentes lugares. Algumas vezes nos mostramos ás pessoas, mas eles morrem de medo de nós. Usam armas e atiram em nós balas de prata. Fazem grandes fogueiras e nos queimam vivos e cortam nossa cabeça.
Mas nós não morremos. Apenas mudamos. Em mortos vivos.
Movemo-nos ao redor do mundo de várias formas. Você não nos vê, mas estamos no meio de vocês, em todas as partes do mundo. Você pode ouvir nossos uivos se escutar com atenção. Eles são carregados pelo vento vindo do sul e através das montanhas brancas do norte.
Não há nada que possa fazer para escapar. Você pode pensar que nos mata com suas balas de prata. Mas você não pode. Movemo-nos de um corpo a outro, de um lugar a outro. Precisamos de sangue e carne morta e estamos sempre famintos. Mataremos qualquer coisa viva: bebês, vacas, crianças, ovelhas, bodes, galinhas, homens, mulheres...
Como pode nos reconhecer? Bem, o que pensa que irá ver? Algumas vezes sou um animal da noite como um morcego ou um lobo ou uma coruja. Ou um negro cão selvagem, como um cachorro que senta na entrada do mundo subterrâneo. Algumas vezes eu sou o fantasma que se deita ao seu lado enquanto dorme. Ou eu sou um lindo homem ou mulher que você deseja mais que qualquer outra coisa neste mundo.
Eu sou todas estas coisas e nenhuma delas. Movo-me entre seu mundo e o meu tão facilmente como um peixe na água. Você não pode entender quão facilmente. Você pode ver alguma coisa se mover no canto dos seus olhos. Se se virar para olhar, não haverá nada lá. Apenas uma folha se mexendo com o vento você pensa.
Mas estou seguindo, pelas sombras, atrás de você. Sou seu pior pesadelo.


VOZ DA BESTA – PARTE II


Agora, eu olho de minha janela e vejo que a luz está indo embora da Terra. Esta noite a lua estará no alto do céu quase a noite inteira. Seu brilho prateado cairá macio como chuva nos campos e florestas, no topo da montanha. Breve sentirei o vento frio da noite em minha face, o ar movendo-se através dos pelos em minha cabeça, braços e costas. Escutarei o som de meus pés conforme eles andem na terra úmida e na grama. Ouvirei o som dos pequenos animais conforme eles se movam rápidos para sair de meu caminho.
Estarei saindo esta noite.
Você pergunta por que? Eu lhe direi.
Alguns visitantes chegaram. Eu os vi caminhando pela floresta. Eu os vi olhando ao redor, para o estranho lugar desconhecido. São pessoas da cidade. Aqui ficam inseguros, se movem com cuidado.
Mais tarde estavam no pub. A morte tocou-a com seus frios dedos. Pude ver isso em seus olhos. Agora ela tema a escuridão que a está seguindo.
Mas também existe algo em seus olhos que eu reconheço. Eu vi este rosto antes. Tenho certeza. Talvez na Grécia, Sul da Itália? Talvez num vilarejo da montanha em algum lugar. Ela me interessa. Não consigo parar de pensar nela. Eu quero que ela venha comigo, que esteja ao meu lado.
Eu sei que ela está pronta para vir ao meu mundo. Mas ela não sabe ainda. Quando eu disser, ela entenderá o que deve fazer. Mas devo ser cuidadoso. A hora tem que ser certa...
Primeiro irei até ela e darei as boas vindas, darei um presente. Devo me preparar.
Ando através do quarto escuro até a lareira.
A luz do dia me faz fraco e doente. A suave luz prateada da lua é o que eu gosto.
Da parede tiro meu cinto. É grande e pesado preto e prateado. Na prata existe a face de um cachorro, o cachorro que senta na porta do mundo inferior.
Coloco o cinto cuidadosamente no chão em frente do fogo. Ajoelho-me e repito as palavras que devo dizer. As palavras são numa linguagem que nenhum homem ou mulher podem dizer. Sinto o calor do fogo em meu rosto. No centro do fogo vejo meus pensamentos indo e vindo.
Depois de um tempo, depois que todas as palavras foram ditas, fico em pé e coloco o cinto.
Imediatamente meus braços e pernas ficam mais fortes. Olho através do céu escuro e dou um grito selvagem. Então, em um grande pulo, saio do quarto através da janela aberta.
A noite está fria, mas eu não sinto. Não sentirei até transformar-me em homem novamente. Toco o cinto ao redor de minha cintura.
Saberei o que fazer, quando chegar a hora certa.


VOZ DA BESTA – PARTE III

Tudo bem. Foi feito com êxito. Meu plano está funcionando bem. Sou bom nisso. Sou paciente e penso em todos os detalhes. Sei como dar um passo de cada vez. Sei como conseguir o que quero. Tempo não significa nada para mim. Posso esperar e esperar pelo momento certo. É como tirar uma fotografia de uma criança ou um animal. Deve-se concentrar, não pensar em nada mais. Você tem que saber o que vai acontecer antes de acontecer. Ou será como pilotar um avião ou um navio dentro de uma grande tempestade. Um pequeno toque aqui, outro ali e tudo irá seguir uma direção reta até o fim.
O marido não está lá agora. Está machucado, mas eu não me importo. Ele está suficientemente machucado. Suficiente para mantê-lo no hospital, longe dela. Mas não tanto para que ela fique apavorada e preocupada com ele. Não quero que ela fique pensando muito nele. Eu quero que ela fique feliz em estar falando comigo.
As coisas serão difíceis para ela agora. Ela precisa de alguém que possa ajuda-la a fazer tudo, as pequenas coisas do dia a dia. Ela está fraca porque a escuridão está chegando perto e ela sabe disso.
Antes, a escuridão estava apenas em seus sonhos. Agora ela a sente mais perto, atrás dela quando está desperta e ela está com medo. Ela está sozinha e precisa de alguém com quem possa falar.
Eu vou ajudá-la. Ela falará comigo porque eu a escutarei. Não como seu marido. Ele não sabe como ouvir. Pouco a pouco, passo a passo. Este é o jeito de faze-lo.

A VOZ DA BESTA – IV

Richard convidou Susie a visitar a velha mansão da família, antes de levá-la ao hospital para ver o marido acidentado.
Ela aceitou, pois não queria ser rude com ele, estava sendo gentil em dar-lhe uma carona.
Ao entrarem na casa ela se assustou com a aparência decadente do lugar, que antigamente deveria ter sido uma bela mansão.
_Venha Susie, vamos para a outra sala, um dos poucos lugares que eu consegui arrumar neste pouco tempo que estou de volta a casa de meus pais.
Entraram numa sala onde havia uma lareira e vários quadros dos ancestrais de Richard na parede.
Era assustador olhar para os quadros, os olhos pareciam estar olhando para ela.
Richard era um homem lindo e sedutor, e muito educado e cavalheiro. Mas ela queria ir logo ao hospital, Charles deveria estar preocupado com sua demora.
Richard já tinha tudo planejado. Serviu um café a Susie, antes de irem ao hospital. Ela aceitou por pura educação, pois se sentia oprimida, uma sensação de perigo e desconforto que ela não conseguia identificar ou descobrir o porque.
Richard encostara-se na lareira bebericando seu café, seus olhos tinham um brilho diferente, Susie pode notar.
Ele tomou o café rapidamente, querendo ir logo ver o marido no hospital.
Sentiu-se tonta, tão cansada. Deveria ser a noite insone que havia passado, sozinha e apavorada na cabana na montanha.
Que férias estúpidas aquelas. Tudo de ruim aconteceu. E agora este sono estranho.
Seus olhos estavam se fechando involuntariamente. Ela viu Richard sorrir de forma estranha antes de apagar.
Quando acordou estava sozinha no escuro. Apenas a luz da lua iluminava a sala, a lareira a muito estava apagada. Estava frio.
Ela estava nua, por isso estava tão frio...Mas por que ela estava nua? Não conseguia lembrar-se de nada, apenas aquela dor de cabeça fortíssima.
Tentou levantar-se, mas caiu ao solo novamente. Estava tonta demais. O que será que havia acontecido. Onde estaria Richard? Será que ela a havia drogado? E por que estava nua? Tantas perguntas sem solução. E o que seria aquela viscosidade entre suas pernas? Por que estava suja de esperma? Ah meu Deus, o que haviam feito com ela?
Sem querer pensar mais Susie se vestiu e tentou sair da sala.
Cambaleou até a porta, mas estava trancada. Ela estava presa. Foi até as janelas, todas trancadas. Sem pensar ela pegou um pedaço de madeira que não havia queimado totalmente e quebrou o vidro de uma janela. Como não era muito alto, resolveu pular era sua única saída.
O vidro quebrou-se com grande ruído. Ela se jogou da janela e caiu pesadamente no gramado. Mas não quebrou nada, ainda bem. Neste momento ouviu um ruído no quarto ao lado do que havia escapado. Só podia ser Richard. Ele deve ser louco, pensou. Um louco homicida.
Sem pensar para onde ia, saiu correndo em direção a colina logo á frente da casa. Havia neve e ela escorregava e caia a todo instante.
Ouviu então um uivo aterrorizante vindo da casa. Como um lobo.
Correu ainda mais rápido, sem olhar para trás, já subindo a colina. A neve dificultava seu avanço e ela caia a todo instante. Suas mãos já estavam sangrando. Seu corpo todo doía.
Um urro selvagem veio de trás dela. Sem mais força para correr, ela se deixou ficar no chão, aguardando o que viesse.
Ela viu um animal preto e enorme vir em sua direção. Na hora que ele ia atacar ouviu-se um tiro. O animal soltou um urro terrível e correu em direção á floresta.
O fazendeiro Tom chegou correndo para ver se ela estava bem.
_Acho que peguei o desgraçado. Minhas balas de prata vão dar cabo dele.
_ Mas o que era aquilo Tom?
_Você escapou do lobisomem de Birminghway.
_ Lobisomem? Mas como Tom, isso deve ser brincadeira.
_Não é Susie, infelizmente não é. Era ele que estava dizimando minha criação de ovelhas. Venha, vamos para minha casa, minha esposa vai cuidar de você.
E assim Susie voltou a vida normal em poucos dias. Seu marido já havia se recuperado o suficiente para voltar para casa. Eles deixariam o lugar no dia seguinte e iriam voltar para casa.

A VOZ DA BESTA – V – EPÍLOGO

Onde estou agora, os rios são como serpentes prateadas. Os campos são quadrados verdes e as árvores são como pequenas flores. Abaixo de mim, seu mundo é apenas um mapa. Eu vejo as ovelhas – elas são do tamanho de pedras na praia. São sujas e cinzentas contra a neve que ainda cobre os campos. A floresta do lado da colina é negra como a noite. Uma fina linha de fumaça sobe da casa no sopé da colina. Minha colina.
Dois homens saem da casa. Eles se parecem com homens de brinquedo. Eles entram em seus carros de brinquedo e ouço a partida. Soa como um vôo zangado. Devo chamá-los apenas por brincadeira? Apenas para ver, mesmo daqui, se ela ainda teme? Eu posso ver muito bem, você sabe. Tenho os olhos de um pássaro que mata.
Então o que aconteceu comigo, você pode perguntar?
Você se lembra do que eu disse? Não, provavelmente não. Direi novamente.
“Não existe nada que você faça que escape de mim. Vocês podem pensar que podem nos matar com suas balas de prata. Mas vocês não podem”.
Bem, sim, o fazendeiro me acertou com suas balas de prata. Então meu corpo se tornou uma pedra – uma das pedras pelas quais ele passou enquanto me procurava. Se você pensa que isso soa impossível, olhe cuidadosamente as grandes pedras que ficam em colinas dos lugares desertos. Olhe nos olhos e faces destas pedras. Pergunte a si mesmo que mentiras estão aprisionadas dentro delas.
Eu voltei para um curto período para o mundo da escuridão e dos mortos vivos. Mas como havia dito, sempre precisarei de sangue dos seres vivos. Sempre precisarei andar em seu mundo. Não posso ficar longe. Azar de vocês.
“Nós nos movemos de um corpo a outro, de um lugar a outro”.
Desta vez, estou cansado. Você possivelmente não pode entender quão cansado isso me faz, tempo após tempo, tendo que achar um novo esconderijo. Então, não, não irei de novo andar pela terra. Ficarei aqui no meio desta floresta e campos.
Agora eu sou um dos pássaros que voam sobre as montanhas. Um dos pássaros que procuram animais para matar e comer. Isto é bom. De onde estou, posso ver tudo.
É verdade que meu plano não funcionou como previa. Ela era mais forte do que eu imaginei. Ela escapou de mim quando pensei que já fosse minha. Cometi um erro. Meu plano não foi suficientemente cuidadoso.
Mas tem algo que ela ainda não sabe. E agora esperarei que isso aconteça.
Esperar? O que isso significa? Que o tempo passa? Vocês pessoas, sinto muito por todos vocês. Vocês falam sobre começos e fins. Mas o começo e o fim do mundo estão além de seu entendimento. Vocês são tão estúpidos. Não sabem que o começo já esta acontecendo? O som vindo do espaço, que é captado pelos cientistas em seus rádios – eles pensam que é o som de como o mundo começou. Mas é o som perdido de tempos perdidos, uma risada preguiçosa. E os estranhos animais que as pessoas falam – como o Monstro de Loch Ness na Escócia, o Yeti no Himalaia, O Grande Gorila no Brasil, os Chupacabras no México, os Vampiros na Europa Central – o que são eles? Eles são os filhos da escuridão. São partes da brincadeira. Carregam mensagens do grande jogador.
Desculpe, estou esquecendo. O que eu ia mesmo dizer? Você está esperando para saber, não está? Ok ok, só porque perguntaram é que vou responder.
Ela irá ter um filho em breve. Quando olhar através da lente da máquina de fotografias ela irá ver que EU sou o pai. A câmera não mente, mas mostra o mundo como ele realmente é. Com sua câmera ela vê coisas que seus olhos não podem ver.
E eu prometo pelo meu próprio pai Lykaon, que matou uma criança para dar a Zeus como comida, que eu voltarei para pegar o que me pertence.

By Ana Kaya