quinta-feira, 24 de março de 2011

O dia do descanso de Deus (*)

Capítulo 1






Romão nada temia.



Tipo calado, até taciturno. Consta que rira uma vez.



- Ainda menino, diziam alguns velhos que o conheceram antes que passasse a usar chapéu. Um de abas curtas e copa baixa. Enterrado na cabeça até onde se plantavam sobrancelhas negras, espessas.



- Foi uma brincadeira, molecagem, abrandava Alarico, amigo de Romão e dono de um cachorro manco que, atiçado ou desatinado, se botou um dia na jovem Florzinha até arrancar-lhe as saias. A de cima e a de baixo, na frente do criaredo, luz do sol a pino, no meio da rua. Romão não conteve o riso. Pouco, bem que se diga. É verdade que logo cedeu à vergonha por zombar da desgraça alheia e fechou-se.



Coragem em Romão era sobrenome. Ele não assinava, mas o povo sabia. Assinatura do tipo é marca, se faz, se repete, não muda mais. Não é bengala, nem muleta tomada emprestada. Faz parte do corpo, constitui o ser. Romão nada temia. Só cuidava de a vida não ser pega de surpresa pela morte. Tanto é que não descuidava da própria sombra. Cuspia no chão sobre a sombra do corpo, sem se mexer.



Era para saber se nela não se escondia a morte, ouviram-no justificar a esquisitice uma vez. Pois o tal gesto foi mal interpretado de uma feita. Achou um cuera de especular da razão. Intimou no grito. Sem resposta, desacatou Romão. Grosseria berrada na calmaria morna do lusco-fusco num boteco. Buliu em vespeiro. Houvesse trilha, seria em dó de contrabaixo com arco de crina de cavalo e corda de tripa de carneiro.



Sem erguer os cotovelos da madeira luzidia de um balcão tosco encerado por dúzias de mangas de flanela, brim ou panos de algodão cru ali escorridos, nem levantando os olhos de sob a aba do chapéu, Romão falou, ainda de costas, fitando o reflexo do desafiante num espelho enferrujado da prateleira de bebidas atrás do balcão:



- Valentia não é coisa que se cheire ou bebida barata que se arrota em boteco.



- Nem covardia! Urrou o cuera, no tom de desfeita, puxando da cintura uma pistola, disparando um tiro.



Um jorro de sangue descreveu curva tênue por sobre o reflexo do homem no balcão até uma cruz efêmera formada pela sombra de ambos no assoalho. Romão percebera o sujeito às suas costas sacando uma pistola. Tal um felino, girara o próprio corpo sobre os saltos da bota, projetando veloz o fio da navalha. Riscou de vermelho, fora a fora, o pescoço do desafeto. Não se ouviu mais som qualquer, após o corpo desabar frouxo os costados no piso gasto do bar. Romão bateu de leve os saltos no assoalho de madeira, anunciando despedida.



Saiu a passo. Lento e firme. Parou um momento no meio da rua sob o sol que banhava morno o fim de tarde. Sem se virar para o que já lhe parecia distante passado, cuspiu novamente na própria sombra.
 
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Primeira novela minha, publicada em 31 de maio de 2007. Esgotada a edoção impressa, disponibilizei o texto integral grátis.  Aqui!

2 comentários:

MPadilha disse...

Não sei vc, mas eu ao escrever uma novela, experimento um prazer indescritível...Vestir a pele de um 'Romão" e sentir suas dúvidas,covardia...Muito bom!

Adroaldo Bauer disse...

Talvez, adiante, ou antes, em sentido linear, o que parece ser não seja, e o que seja não é. Bem como as coisa na vida são. Talvez covardia seja coragem, e valentia apenas demência. A novela inteira está disponível grátis em Bookess. Nesse link, ME
http://www.bookess.com/read/3819-o-dia-do-descanso-de-deus-/
Beijo. E, respondendo, sinto-me um pouco cada personagem destas, e elas, penso, são mais de mim que eu mesmo agora seja.