terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

NATAL... ANO NOVO... CARNAVAL E CINZAS...



A noite não está fria, mas a chuva contribui para que o caos rotineiro, da grande cidade, se torne mais intenso. Postado no alto de um dos edifícios abandonados do centro, observo a movimentação dos transeuntes e veículos; fosse humano, as gotas da chuva se misturariam as minhas lágrimas, mas não possuo a virtude de poder verter a angústia que habita meu âmago.
Há poucos dias o negrume noturno era decorado por explosões multicores anunciando festejos regados a hipocrisia e lautos festins acompanhados de entorpecentes bebedeiras; ah, sim, também aconteceram algumas ceias modestas e cobertas de profundo sentido, mas foram tão poucas... Por duas vezes os humanos se reuniram em comemorações ruidosas e cheias de pompa.
A primeira lembrava o nascimento de alguém que não fazia parte da maioria das celebrações; um jovem esquecido pela maioria que diziam festejar seu aniversário, mas que negavam um pouco de seu fausto aos deserdados pela vida; nem sequer conheciam aquele que deveria ser reverenciado, nunca se preocuparam em saber porque Ele era tão festejado.
A segunda festividade se revestia de um sentido mais mundano, a passagem de um ciclo; fato que já foi visto como um momento de importância singular onde os povos celebravam com ritos de profundos significados, mas que os homens banalizaram transformando em fugazes orgias dos sentidos. Denominam como sendo o dia internacional da confraternização universal, mas onde habita a confraternização?
Ao mesmo tempo em que se acolhe os mais próximos, ignora-se a sorte dos malditos retirantes que vagam pelas artérias escuras e imundas da cidade. Um pedaço de pernil para o cão que se resguarda sob a proteção domestica, não que eles não mereçam, mas por que não ofertar ao menos um quinhão àqueles que não possuem a possibilidade de sorver sequer o necessário para atender suas necessidades?
Neste ponto minha própria necessidade se intromete em minhas ponderações, a sede me atormenta fazendo lembrar a secura que envolve minhas entranhas. Sinto-me tão enojado que seria incapaz de sorver as forças destes desprezíveis que perambulam pela noite. Será que deveria imolar a prostituta que se vende por miseras moedas? Ou o chouvinista que a paga por usar seu corpo sem escrúpulos? Quem sabe aquele bando que espreita o incauto na intenção de suprimir-lhe o pouco que traz em seus bolsos...
Ah, os miseráveis errantes, os desprevenidos usuários, os mal... ditos... humanos... ainda ouço os ecos dos festejos, mas eles parecem alheios ao tempo, aos indícios, surdos ao repicar dos sinos silentes, cegos aos lampejos das explosões adormecidas... ainda há pouco... armam-se com suas armas e ardis, vilipendiam seus iguais, exploram os mais fracos, assassinam os indefesos, maltratam os maltrapilhos, violentam suas crianças... e ainda ousam me chamar de... monstro...
Alguns travestidos de euforia caminham pela escuridão ruidosa; seus trajes remetem minha lembrança a um outro momento de regozijo dos homens, em breve o carnaval eclodirá arrebanhando ricos e miseráveis, letrados e analfabetos, eruditos e ignorantes, religiosos e ateus, bandidos e mocinhos... como se eles ainda existissem... mas não é este o aspecto que me chama a atenção.
Estes mesmos foliões que sorriem e permitem que suas alegrias extravasem em gritos incontroláveis, são os mesmos que agridem aquele que veste os trajes de outra agremiação, que incomodam aquela mulher vestida... não, ela está quase nua, que desfila em sua própria escola... ah, esses humanos...
Olho em trono da região e diviso a silhueta indiferente daquilo que eles chamam praça da apoteose, o concreto frio e sem vida se mostra indiferente ao movimentado desfile que o abraça. Ainda não está coberto por todo luxo que se oculta nos barracões, afinal é apenas um ensaio, mas é o suficiente para que eu me indigne com outra das muitas banalidades que compõem o cenário do universo humano.
Enquanto os agraciados pela regia imponência de Momo traduzem suas eufóricas manifestações em cenas ousadas e sensuais, uma dúzia de miseráveis erram sem destino pelos arredores... não, não estou me referindo à multidão de viciados e vagabundos que se reúnem aos foliões, mas de alguns poucos deserdados que não têm motivo algum para sentirem-se contagiados pelas festividades de seus pares.
Minha carência de vigor parece que ainda se prolongará por um período indefinido; não sinto o menor apelo por aqueles sobre os quais meus olhos repousam; o fogo arde em meu âmago, mas recuso-me a consumir essas energias contaminadas por vibrações tão vis...
Um aroma destoante chega à minhas narinas, a pureza volitando entre tanta sujeira, quem será que traz tão rara fragrância? Procuro entre os notívagos e localizo a origem do odor, uma moça caminha sem perceber a natureza do local que a cerca. Tonta? Autoconfiante? O que ela procura neste local?
Há quanto tempo a pureza se dissociou da inocência? Sinto-a distante da sujeira reinante não por desconhecê-la, mas por manter-se alheia a seus apelos. Seus olhos miram a imundice, mas seu coração se mantém cerrado aos tentáculos que a buscam.
Talvez eu devesse torná-la fonte do saciar de minha angústia, mas me pergunto se seria justo subtrair ao mundo exemplar tão raro; antes que pudesse mergulhar fundo em minhas considerações, olhos imateriais me fitam do passado... eu sei a quem eles pertencem...
Não, eu não cometerei o mesmo erro...
Uma dor mais forte me atinge ao recordar-me de meu erro; o mesmo apelo pela essência translucida... mas eu aprendi, eu jurei, eu... eu me arrependi... não que meu arrependimento me rendesse redenção, mas eu não me importo com o porvir imediato, eu sei que meu erro não tem perdão.
Quem sabe se eu a tomasse por protegida... quem tento enganar? Acaso acredito ser algum anjo?... tudo bem, um dia... será mesmo?... sim, um dia eu já fui um anjo... eu já formei junto às falanges imortais, mas isso já faz muito tempo...
Mantenho-me angustiado, mas impávido. Continuo seguindo seu trajeto silencioso e solitário. Meu sentido aguçado indica a iminência de um perigo mortal; ela caminha em direção a um bando de celerados; tenho que evitar a conclusão famigerada... mas eu não devo intervir na trajetória humana... bem, meu erro foi a primeira vez que eu interferi...
Preparo-me para o vôo até o local onde seus passos se cruzarão. A noite mergulhada na escuridão e a mal iluminada rua será um fator favorável; eles nem saberão como tudo acontecerá.
Posiciono-me entre a viga de sustentação do elevado e a superfície inferior da laje; tenho uma visão privilegiada de toda área. A perspectiva de sentir as energias sendo vazadas me deixa irrequieto, não aprovo minha condição parasita, mas esta característica faz parte de minha maldição... ao menos não se trata de pessoas de valor... isto será asqueroso, as energias vis me enojam...
Um olhar mais atento e mensuro a distância, agora resta pouco, meus sentidos se aguçam, mais um segundo e... a custo retenho meus movimentos incapaz de acreditar na cena que observo; a tranqüilidade da moça, diante dos famigerados que a abordam, é intrigante.
Ela os observa em silêncio e passivamente enquanto é rodeada pelos corpos mal cheirosos. Os risos de escárnio e as articulações indecentes que são vomitadas conspurcam até mesmo a escuridão da noite. Os sentidos da moça estão em sintonia com uma energia singular, ela não demonstra a menor apreensão.
Um dos meliantes lança sua mão imunda na direção das pernas da moça, um gesto, um erro e foi só. Antes mesmo que o braço estivesse totalmente retesado, o som de ossos se quebrando ganhou o ar. Os olhos esbugalhados do sujeito evidenciavam toda sua incredulidade, mas a surpresa deu lugar à dor e um urro horrendo fendeu a noite.
Os outros não demoraram a reagirem. Confiando em seus corpos mais preparados para um combate além da superioridade numérica, eles não se intimidaram nem tentaram posicionar de forma vantajosa, atacaram como um bando descontrolado.
Algum espectador menos preparado não teria acompanhado o desenrolar do fato. Quase imperceptivelmente, a moça movia seu gracioso corpo em um balé magistral. Ao mesmo tempo em que se furtava aos golpes adversos, atingia seus agressores com uma força incomum. Até mesmo eu comecei a me deixar dominar por uma onda de espanto impar.
Toda ação não demorou mais do que alguns parcos minutos, sem emitir qualquer som, ela abateu todos que tentavam atacá-la. Os corpos estendidos a sua frente não deixavam dúvidas quanto ao resultado do tresloucado ataque. Novamente me preparei para deixar meu recanto, mas ela parecia não ter terminado sua reprimenda.
Sobrepondo-se aos corpos desfalecidos, ela os cobriu um a um. Intrigado, fiquei observando seu agir. Somente quando ela se elevou sobre o corpo do último dos agressores foi que pude observar o detalhe rubro indicando que ela acabara de se fartar dos incautos.
O tempo deve estar comprometendo minha percepção, apesar de meu senso apurado de observação não havia conseguido identificar a natureza do ser que desfilava inocentemente em um meio tão nefando. Ao mirar aqueles olhos vermelhos, um novo choque; não se trata apenas de um dos seres que se irmanam com minha natureza, eu conheço aquela que saciou sua sede nos corpos nauseabundos dos vermes que imaginavam que ela seria uma presa fácil para suas sevicias; ela é uma antiga amiga.
Eu poderia manifestar-me aproximando-me sem receios, mas desde que me afastei dos outros, jurei que nunca mais os exporia à minha presença conspurcante; eles não merecem uma provação tão nefasta. Na mesma posição em que me havia detido, observo-a afastar mesclando-se ao manto escuro da noite.
A silhueta escura deslizou sem qualquer som deixando-me novamente entregue às minhas ponderações recriminadoras. Um estrondo me traz a realidade crua; sons estridentes golpeiam a noite, até então silenciosa, os humanos celebram suas ilusões; festividade inócua, logo o carnaval chegará ao fim e a realidade os colherá com toda sua crueza.
É, creio que eu ainda esteja impregnado pela essência que um dia me pertenceu... quem sou para recriminar os humanos por sua frivolidade? Não sou eu aquele que deveria tê-los despertado para a realidade de suas miseráveis condições? Mortalmente ferido por minha própria consciência, resigno-me a minha condição de maldito e recolho-me a minha insignificante existência... em poucas horas o carnaval terá encerrado e o mundo voltará a cobrir-se de cinzas...

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