domingo, 15 de abril de 2012

VOZES


As vozes se instalaram em sua mente antes da
demência. No início eram agradáveis, insinuantes conselhos ou revelações, mas
já se mostravam permanentes, um fenômeno que jamais o abandonaria. As conversas
amistosas o deixavam tão sereno que ninguém se importou com os demais sinais de
alteração em sua psique.

“Não, eu não vou afogar o gatinho!”

Suas negativas em atender as orientações
começaram a fragmentar sua mente, em pouco tempo tiveram que isolá-lo,
trancá-lo em um quarto da imensa construção ocupada por sua família.
Os anos foram se acumulando na imensa
ampulheta do tempo, a família diminuindo pelas mortes ou casamentos, até que
não restava mais ninguém interessado em manter a posse da arruinada mansão.
Quando a imobiliária enviou a equipe de demolição,
finalmente a prisão foi revogada; livre após anos e anos esquecido em um quarto
escuro e imundo. Mas o que a liberdade trouxe para sua vida? Onde estavam as
pessoas, poucas, que ele conhecia?
As ruas o acolheram como uma madrasta
malévola. Era como se ele tivesse se tornado invisível; nem mesmo uma sombra
mal projetada, apenas um nada em meio ao caos da imensa cidade. De tudo que ele
possuía apenas as vozes permaneceram em sua existência. Agora que já não era
mais uma criança, que estava sozinho, elas o dominavam por completo.

“Eu sei, eles não prestam, mas como posso
enfrenta-los?”

Seus olhos mantinham-se vazios, alheios a
quaisquer estímulos externos; a baba, que saía permanentemente de sua boca, não
era o pior dos indícios de sua demência. O sorriso abestalhado, os gestos
destemperados, as atitudes paranoicas, mas a característica mais evidente era o
constante diálogo que mantinha com seu algoz.
O surto maior ainda não havia chegado; em seu
íntimo ele sabia que era questão de tempo, mas sua condição mendicante
indicava-lhe que não teria chance de colocar em prática aquilo que sua “voz
interior” ordenava. Tentou aliar-se a um grupo de delinquentes, mas foi
rejeitado devido a sua condição de quase retardado; ousou agredir um transeunte
incauto, mas foi espancado quase até a morte; ainda assim as vozes não o
abandonavam.

“Chega! Exasperou-se um dia. Já que querem
tanto que eu os mande para o inferno, me mandem ajuda!”

A real ajuda que ele precisava seria um
tratamento adequado que o livrasse de sua demência, mas como cruzar o caminho de
um coração bondoso se nem ao menos notavam sua presença? Ele sempre foi um
nada, por que seria diferente agora que perambulava solitário e coberto de
imundices pelas ruas da indiferente cidade?
Mas o grande dia chegou!
Em verdade foi a grande noite. Ele preparava-se
para jogar seus andrajos em um canto qualquer da área central; oculto ou aos
olhos de todos; seco ou tomado pela umidade; ocupado não servia, ele não era páreo
para os deserdados da sorte que dividiam os espaços das ruas; o chão duro ou
uma cobertura menos rígida não lhe causavam nenhuma atenção mais apurada, seu
corpo estava habituado às privações originadas pela pobreza.
O canto imundo que encontrou, naquela noite, havia
sido disputado por alguns viciados, mas seus corpos pareciam ter se rendido a
rigidez cadavérica comum aos mortos. Sem se preocupar com a condição dos
outros, deitou-se ao lado de seus corpos. Estava quase pregando os olhos quando
os viu; quatro silhuetas esguias e tão negras quanto a noite; vinham caminhando
cadenciadamente em sua direção. As vozes se manifestaram imediatamente:

“Posso confiar nesses aí? É claro que vou
obedecer!”

As instruções foram concisas. Ele achou
difícil entende-las uma vez que as vozes não se calavam mesclando-se as outras
vozes que lhe falavam através dos quatro estranhos. Atendendo as orientações
aproximou-se dos corpos caídos ao seu lado, revirou-os procurando pelos
instrumentos de sua redenção. Com dificuldade conseguiu reunir todos em um
embrulho mal feito, sorriu como se agradecesse aos falecidos e partiu para sua
guerra santa.
Pobreza, vícios, degradação e desespero
volitavam sobre a área escolhida. Almas em estados paupérrimos vagavam como
zumbis; verdadeiros mortos vivos que desconheciam a própria condição infeliz. Ali
ele travaria sua guerra, ali ele faria a colheita para a qual fora preparado
durante toda sua maldita existência.

“Muito bem, chegamos, agora posso começar.”

Com brutalidade jogou o amarrotado embrulho
sobre o chão; ergueu os instrumentos segurando um em cada mão; virou-se para o
bando que se concentrava no interior das ruinas fazendo seus instrumentos
trovejarem lançando suas primeiras vítimas ao chão.

“Não quero ouvir nenhuma voz e também não
quero ver nenhum movimento!”

As mentes entorpecidas pelo vício não
atinaram de imediato, mas aos poucos foram assimilando a realidade tétrica que
se desenhava ante suas precárias existências. Um doido estava parado diante
deles com duas automáticas apontadas na direção do bando e acabara de mandar
alguns para outro mundo.

-- Quem é você? O que quer de nós? Balbuciou um
dos presentes.
-- Eu não sou ninguém e também não quero nada
de vocês.
-- Por que nos ataca, então?
-- Vocês são o lixo da humanidade e elas me
mandaram limpar o mundo de toda imundice.
-- Elas quem?
-- As vozes!
-- Cara, você tá muito doidão!

A voz que se manifestou tão imprecavidamente
foi silenciada por um trovejar mais agudo. Os instrumentos portados por ele
intimidavam todos, principalmente após sua reação; um corpo a mais juntou-se
àqueles que haviam tombado logo em sua chegada.

-- Alguém mais pretende abreviar minha
limpeza?

O silêncio e o terror dominaram a todos. Mesmo
que estivessem em condições de reagir, não o teriam feito. Fragilizados pelo entorpecimento,
não tinham como reagir e alguns nem ao menos tinham consciência daquilo que
estavam para enfrentar.

“Eu já comecei! Parem de me tratar como se
ainda fosse um garotinho!”

Nunca as vozes estiveram tão ativas. As ordens
se sucediam com tamanha velocidade que ele sentiu-se confuso; em meio a
confusão, por um tênue momento, ele teve um lampejo de lucidez; o terror que
sentiu foi muito maior do que aquele que causava em seus reféns.

-- Por que está fazendo isso, cara? Soou o lamento
incorpóreo.

O som do rogo tirou-o da confusão agrilhoando
a lucidez nas masmorras da loucura. Sem mais perder tempo, acionou seus
instrumentos num agir vertiginoso. Os corpos iam se acumulando e o sangue
jorrava em profusão manchando o piso com o rubro escarlate. Sirenes distantes
começavam a soar, mas as vozes eram mais altissonantes.
Ao término de alguns minutos seus instrumentos
silenciaram. As vozes animavam-no, elogiavam seu desempenho, estimulavam-no a
prosseguir afinal a noite ainda estava apenas começando. Recolheu os
instrumentos no emaranhado de panos que trouxera preparando-se para deixar as ruínas.
Ao pisar a calçada, foi engolido pela claridade dos faróis e giroflex das
viaturas.

-- Solte as armas e deite-se imediatamente! Soou
a ordem em tom metálico.

Ele não reconheceu aquela voz; não era uma
das que estava habituado a ouvir. Antes que o pânico o dominasse, as vozes de
sempre o orientaram:

-- Não reconheço você! Não pertence às vozes
que me acompanham.
-- Não queremos chegar ao extremo, mas se não
largar suas armas teremos que atirar.
-- Minhas armas são para a limpeza da sujeira
que infesta este mundo!
-- Solte suas armas!

‘Si, eu os reconheço! Eles também fazem parte
da sujeira que emporcalha este mundo!

Antes mesmo de poder apontar seus
instrumentos, seu corpo sentia os impactos dos projetei que se alojavam em sua
carne. A dor o consumiu de modo atroz, o frio preencheu todo seu corpo, o medo
manifestou-se com ferocidade e pela primeira vez em sua maldita vida ele não
ouviu as vozes. No momento mais crucial de sua existência, no instante que mais
necessitava ouvir suas ordens, elas se calavam.
Foi no morrer total das vozes que ele sentiu
sua vida esvaindo-se lentamente. O sentimento de ter sido traído o deixou mais atônito
do que a própria morte. Ele havia obedecido todas as ordens recebidas, por que
elas o haviam abandonado? Amaldiçoou-as do fundo de sua alma, mas isso de nada
adiantou, em nada modificou seu estado. Sem entender direito o que se passava,
com o olhar idiota que sempre carregou no semblante, eles simplesmente cerrou
os olhos morrendo para o mundo que nunca soube aceitá-lo.

Um comentário:

Es†rela Negra disse...

Sacie minha sede,
Sob a fúria da minha madição
A marca da minha perdição,
Imundice em minha pele, fede

Uivo para a lua
Feito um cão raivoso
A vagar no imenso da rua
Escarnecendo meu corpo rancoroso

Injuriada pela hipocrisia
Que habita o mundo humano
Sangro minha seiva, vinho profano
Meu canto de miséria, minha poesia

Aquela que tentaram apagar
Da história da criação,
Do livro da vida, tentaram execrar
Ocultando seu rosto em meio à escuridão

Aquela cujo nome não se deve pronunciar
Aquela cuja influência pode cegar
Aquela cuja paixão pode matar
Estrela Negra, sua alma veio levar...


Aqui estou Me Morte... Se é ira, tristeza, caos, desolação o que busca, tenho aqui de sobra para você e para quem mais quiser se saciar dessa alma condenada...
Meus cumprimentos...