quinta-feira, 14 de junho de 2012

EU... Ɇ... A MORTE


Eu a encontrei por acaso... Não, nós nos encontramos assim sem querer... Na verdade, Ela me encontrou, afinal mais cedo ou mais tarde Ela acaba encontrando a todos...



A névoa cobre toda a região. O frio que ela traz penetra no fundo da alma. Estivéssemos no inverno e eu não permitiria a apreensão me dominar, mas o verão reina absoluto, ou pelo menos deveria ser ele a ocupar o trono das estações; diferente do que se passa comigo...

Meu pai ainda reina sobre nossas terras. Não que eu deseje sua coroa, mesmo porque não sou o mais velho de seus filhos, mas sua idade avançada o leva a buscar alianças equivocadas. Enquanto estou postado sobre o alto da elevação que nos separa da planície aguardando o exército que se aproxima, ele mantém-se confortavelmente instalado em seu castelo, reunido com seus mais novos bajuladores.

Não reclamo de minha condição guerreira, eu detestaria ser obrigado a acompanhar meus irmãos nas formalidades reais, mas sempre acreditei que os reis deveriam comandar seus soldados. Honra-me ter sido escolhido para liderar a batalha, mas ainda assim considero mais um desatino cometido por meu amado rei...

Ainda não consigo divisar a coluna dos inimigos. O anúncio de seu ataque chegou durante a noite. Estávamos protegidos pelos braços de nossas esposas, amantes ou mães até ouvirmos o troar do corne altissonante. Imediatamente nos reunimos diante do castelo, mas o rei não apareceu, mandou-nos um de seus sectários ordenando que nos movimentássemos para os limites das terras ocupadas e esperássemos pelo inimigo.

A meu ver o verdadeiro inimigo estava abrigado dentro de nossas casas.

O cavalo que me servia de montaria deu uma resfolegada ao mesmo tempo em que seu corpo estremecia e se enrijecia por completo. Os animais são capazes de pressentir a presença do mal antes mesmo que ele se apresente diante de nós. Habituado ao comportamento esmerado de minha montaria, estranhei sua reação; já havíamos lutado varias batalhas e nunca havia testemunhado um comportamento semelhante.

Finalmente a falange mais avançada do exército inimigo se mostrou. Olhei os semblantes carregados dos homens que perfilavam ao meu lado, embora alguns evidenciassem o medo que corria em suas entranhas, nenhum deles demonstrava hesitação. A maioria deles era composta de jovens recém saídos da idade imberbe; os rostos mal podiam ser vistos através dos elmos, mas seus olhos brilhavam como chamas através das aberturas.

Os soldados inimigos se mostravam mais ousados. Suas cabeças estavam totalmente descobertas. Mirando-os com atenção, eu podia notar quão jovens também eram. Diferente de alguns daqueles que me seguiam, em nenhum dos inimigos eu pude detectar algum indício de medo; ou eles eram mais corajosos ou estavam dominados pelo espírito maligno que corrompera seu líder.

Ah, sim, por falar no líder dos inimigos, ele se fazia ver em toda sua glória diante daqueles a quem comandava. Não fosse pela aura malévola que o envolvia, eu poderia jogar-me a seus pés e jurar-lhe fidelidade eterna, mas ele não era digno de ser seguido; seus feitos horrendos ganhavam corpo e antes mesmo que ele se fizesse presente, todos já sabiam que ninguém sobrevivia a seus ataques.

Para meu espanto, ele adiantou-se portando seu estandarte encimado por uma faixa alva; ele queria conversar.

Adiantei-me resoluto. Se ele pretendia desperdiçar seu fôlego com conversa inútil, eu não o impediria. Enquanto conversássemos, eu aproveitaria para sondar seus homens, analisar suas condições e seu posicionamento e assim preparar uma estratégia mais sólida para a defesa de nossa posição.

-- Dia venturoso para se viver! Soou sua voz nítida e plácida como se fosse o vento a soprar delicadamente sobre os elementos da natureza.

-- O que deseja. Minha voz soou mais gutural do que eu desejava, mas firme o suficiente para deixar claro que eu não o temia.

-- Nada tenho contra você ou seus homens. Só desejo cruzar suas terras para fazer frente ao verdadeiro motivo de minha jornada.

-- Meu rei não permite que usem suas terras para agressões desonrosas.

-- Seu rei! Não é o regente desses homens?

-- Não! Sou seu filho e como tal devo dar mostras de merecer seu amor.

-- Um rei que não comanda seus homens... pode honrar um rei assim?

-- Ele é meu pai! Ele me confiou a defesa de nossas terras!

-- Está certo. Não vim até aqui para discutir seus costumes.

-- Não posso permitir que avance por nossas terras.

-- Neste caso teremos que tentar.

-- Nossa posição é mais vantajosa.

-- Meus homens são mais bem preparados que os seus. Percebe-se que são, quase todos, crianças.

-- Crianças! Ousa nos afrontar com sua arrogância?

-- De modo algum, apenas tento evitar que morram antes mesmo de conhecerem os prazeres que a vida tem a lhes oferecer.

-- Se não deseja que alguns morram, recue!

-- Não posso. A honra dos meus foi maculada pela atitude vil daquele que vive além de suas terras.

-- Não nos foi apresentado caso semelhante. O que sabemos é que são conquistadores ávidos por terras que não lhes pertencem.

-- Ah, ah, ah, ah!

-- Escarnece de nós?

-- Não. Mas causa-me riso saber que dão crédito a tão pueril versão.

-- Por que não daríamos crédito às histórias que ouvimos sobre suas ações?

-- Acaso estou aqui para conquistar suas terras?

A pergunta do líder inimigo me deixou sem resposta. Na verdade ele apenas desejava que lhe permitíssemos passar por nossas terras. Se a história que chegou até nós fosse verídica, ele não estaria solicitando permissão para passar por nossas terras.

-- Então, jovem príncipe, o que me diz?

Meus pensamentos voaram até o salão onde meu pai se encontrava reunidos com seus novos aliados. O lauto das reuniões contrastava com a parca provisão que tínhamos a nossa disposição; o calor acolhedor das paredes do castelo lembrava-me do frio que grassava nossos corpos tornando-o ainda mais intenso; os prazeres compartilhados, embora disto eu não sentisse falta, meus homens desejariam estar nos braços de suas amantes e esposas desfrutando de seus corpos e satisfazendo seus apelos carnais com toda sofreguidão.

Desviei minha atenção voltando-a para o campo de batalha. Lentamente mirrei os semblantes indistintos daqueles que formavam a linha de defesa, aguardando minha decisão; rostos pueris entorpecidos pelo frio e dominados pelo inebriante apelo do repouso que lhes faltava.

Será que eles mereciam que eu os sacrificasse em defesa daqueles que se banqueteavam sem nem mesmo se importarem ou sequer saberem de suas existências?

-- Não posso permitir que ultrapasse nossos limites.

-- Então não nos resta opção, será o confronto.

-- Mas também não me julgo detentor do direito de sacrificar meus homens em uma batalha tão sem sentido.

-- Um impasse!

-- O que o rei sugere?

Um riso desconcertante decorou seu semblante acompanhado por um brilho intrigante que cobriu seu olhar. Sem nada responder, voltou-se na direção de seus homens e com a voz mais sombria que já tinha ouvido até então, proclamou:

-- Asmodeu!

Não se passou nem um minuto e um enorme guerreiro se apresentou diante de nós.

-- Este é meu guerreiro mais bravo. Apresente-me o seu e eles duelaram para que possamos decidir se permite ou não nossa passagem.

Meu coração acelerou-se com tamanha intensidade que tive certeza de que o rei inimigo pressentira minha agitação. O guerreiro era tão gigantesco e seu porte tão feroz que eu não me sentia em condições de sugerir que um de meus homens pudesse enfrentá-lo.

-- Não posso oferecer um dos meus em sacrifício.

-- Mas será a vida de um pela de dezenas.

-- Se assim for, que essa vida seja a minha.

O rei inimigo me lançou um olhar de profunda admiração. Seus lábios se moveram num esgar silencioso, quase que como se pronto a me saudar.

-- Um príncipe não deve digladiar-se com um guerreiro a não ser durante a batalha. Se é sua vontade representar seus homens, eu o enfrentarei.

-- Que assim seja.

-- Antes de começarmos, deve deixar claro aos seus que se vencermos teremos livre passagem pelas terras de seu rei.

-- Eu os informarei.

-- Eu me curvo diante de sua honra. Mesmo que seu rei não chegue a se comparar com sua sombra, eu aceitarei o julgamento de nossas armas.

A ofensa lançada contra meu pai ficou sem resposta. Recuei até onde meus homens estavam para informá-lo sobre o que havíamos acordado. Eles ficaram aliviados ao saber que não precisariam lutar, apenas meu capitão se opôs ao pretendido:

-- Seu pai não concordará com sua decisão.

-- Meu pai não ousará se colocar contra um pacto de honra.

-- Ele poderá nos punir por nada fazer.

-- Se ele tentar algo semelhante, partam de nossas terras e busquem acolhida junto ao rei inimigo; ele honrará nosso pacto e nada fará contra vocês.

Refleti por um instante e escolhi as armas que usaria em meu desafio. O escudo não era favorável aos movimentos, mas me permitira suportar os ataques do inimigo. Eu não sabia nada sobre as habilidades do adversário, mas precisava confiar nas minhas.

-- Já informei aos meus quanto aos termos de nosso pacto.

-- Ótimo! Sendo assim, não temos mais porque adiar a disputa.

A expectativa dominou a todos que se posicionaram para testemunhar nosso embate. O interesse era tanto que nossos homens quase que chegaram a formar um círculo a nossa volta. A sorte estava lançada.

Meu primeiro ataque foi infrutífero; o rei inimigo possuía a habilidade de um combatente experiente; seus movimentos denotavam um apuro comum àqueles que já haviam enfrentado muitas situações iguais; eu estava em desvantagem.

Nossas lâminas se chocavam com ferocidade produzindo faíscas cintilantes; depois de outros dois golpes inúteis, percebi que meu escudo era um peso a mais e lancei-o ao chão. Agora éramos apenas eu, meu adversário e nossas espadas.

Não havia ódio em nossos corações; o olhar sereno de meu inimigo deixava isso muito evidente; também não se notava medo em nossos corações, apesar de saber-me em desvantagem, eu tinha coragem suficiente para fazer frente a qualquer inimigo. O duelo era permeado pela mais nítida honra, isto talvez tenha me desequilibrado o suficiente para que o primeiro golpe do inimigo rompesse a grossa malha que me cobria permitindo que sua espada osculasse meu braço esquerdo.

O sangue jorrou suavemente, o corte não havia sido profundo.

Enquanto bailávamos estudando e preparando nosso próximo golpe, eu fui dominado por um entorpecimento incomum; minha mente divagava entre a realidade e as oníricas ondas de um mundo irreal; ao mesmo tempo em que visualizava o semblante sereno de meu inimigo a me fitar, um outro rosto surgia antepondo-se ao seu; um rosto coberto por um capuz andrajoso que me permitia a mais apavorante das visões, um rosto descarnado e sem vida.

Novamente meu vacilo permitiu que o inimigo me ferisse em uma parte não vital e com a mesma superficialidade do golpe anterior. Tentei manter-me focado no combate, mas as visões se sucediam sem que eu pudesse controlá-las. O sorriso amistoso do semblante fraterno do inimigo dava lugar ao compacto crânio descarnado. Desejando afastar aquela visão apavorante, desferi inúmeros golpes a esmo, um deles logrou desarmar meu adversário.

Vendo-o desarmado, baixei minha guarda; foi neste momento que toda metamorfose começou.

O avanço de meu inimigo foi tão fulminante que não o vi sequer deslocar-se em minha direção. Não vou considerá-lo desleal por ter utilizado arma tão improvável, afinal estávamos batalhando e quando estamos defendendo nossas vidas, agimos de modo instintivo, mas confesso que ainda me sinto surpreso com sua ação.

Enquanto ele se movia para mim, ou talvez tenha sido quando suas presas me laceraram a carne, não estou certo, mas em um ou outro momento as visões foram substituídas por sombras confusas, um redemoinho intenso que inutilizou minha capacidade de raciocinar sobre o que quer que fosse.

Assim que suas presas romperam minha jugular, senti minha vida esvaindo-se lentamente acompanhando o fluxo de sangue que ele sorvia avidamente. Seus olhos ainda pareciam-me serenos, seus gestos tão dóceis que a dor era como uma ilusão distante, mas a figura horrenda do esqueleto esbranquiçado não mais voltou; em sue lugar divisei o lindo rosto de uma donzela esplendorosa que me fitava com o olhar envolto em um sorriso que jamais cansei de admirar.

Minhas pernas fraquejaram e meu corpo começou a deslizar para o chão, mas antes que a gélida superfície o alcançasse, eu senti o beijo mais doce que um ser humano seria capaz de receber; descerrando meus olhos pela última vez, vi aquela donzela inefável a sorver minha alma através de minha boca; bestialmente eu a fitei e sorri.

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