Eu a encontrei
por acaso... Não, nós nos encontramos assim sem querer... Na verdade, Ela me
encontrou, afinal mais cedo ou mais tarde Ela acaba encontrando a todos...
A névoa cobre toda a região. O frio que ela
traz penetra no fundo da alma. Estivéssemos no inverno e eu não permitiria a
apreensão me dominar, mas o verão reina absoluto, ou pelo menos deveria ser ele
a ocupar o trono das estações; diferente do que se passa comigo...
Meu pai ainda reina sobre nossas terras. Não
que eu deseje sua coroa, mesmo porque não sou o mais velho de seus filhos, mas
sua idade avançada o leva a buscar alianças equivocadas. Enquanto estou postado
sobre o alto da elevação que nos separa da planície aguardando o exército que
se aproxima, ele mantém-se confortavelmente instalado em seu castelo, reunido
com seus mais novos bajuladores.
Não reclamo de minha condição guerreira, eu
detestaria ser obrigado a acompanhar meus irmãos nas formalidades reais, mas
sempre acreditei que os reis deveriam comandar seus soldados. Honra-me ter sido
escolhido para liderar a batalha, mas ainda assim considero mais um desatino
cometido por meu amado rei...
Ainda não consigo divisar a coluna dos
inimigos. O anúncio de seu ataque chegou durante a noite. Estávamos protegidos
pelos braços de nossas esposas, amantes ou mães até ouvirmos o troar do corne
altissonante. Imediatamente nos reunimos diante do castelo, mas o rei não
apareceu, mandou-nos um de seus sectários ordenando que nos movimentássemos
para os limites das terras ocupadas e esperássemos pelo inimigo.
A meu ver o verdadeiro inimigo estava
abrigado dentro de nossas casas.
O cavalo que me servia de montaria deu uma
resfolegada ao mesmo tempo em que seu corpo estremecia e se enrijecia por
completo. Os animais são capazes de pressentir a presença do mal antes mesmo
que ele se apresente diante de nós. Habituado ao comportamento esmerado de
minha montaria, estranhei sua reação; já havíamos lutado varias batalhas e
nunca havia testemunhado um comportamento semelhante.
Finalmente a falange mais avançada do
exército inimigo se mostrou. Olhei os semblantes carregados dos homens que
perfilavam ao meu lado, embora alguns evidenciassem o medo que corria em suas
entranhas, nenhum deles demonstrava hesitação. A maioria deles era composta de
jovens recém saídos da idade imberbe; os rostos mal podiam ser vistos através
dos elmos, mas seus olhos brilhavam como chamas através das aberturas.
Os soldados inimigos se mostravam mais
ousados. Suas cabeças estavam totalmente descobertas. Mirando-os com atenção,
eu podia notar quão jovens também eram. Diferente de alguns daqueles que me
seguiam, em nenhum dos inimigos eu pude detectar algum indício de medo; ou eles
eram mais corajosos ou estavam dominados pelo espírito maligno que corrompera
seu líder.
Ah, sim, por falar no líder dos inimigos,
ele se fazia ver em toda sua glória diante daqueles a quem comandava. Não fosse
pela aura malévola que o envolvia, eu poderia jogar-me a seus pés e jurar-lhe
fidelidade eterna, mas ele não era digno de ser seguido; seus feitos horrendos
ganhavam corpo e antes mesmo que ele se fizesse presente, todos já sabiam que
ninguém sobrevivia a seus ataques.
Para meu espanto, ele adiantou-se portando
seu estandarte encimado por uma faixa alva; ele queria conversar.
Adiantei-me resoluto. Se ele pretendia
desperdiçar seu fôlego com conversa inútil, eu não o impediria. Enquanto
conversássemos, eu aproveitaria para sondar seus homens, analisar suas
condições e seu posicionamento e assim preparar uma estratégia mais sólida para
a defesa de nossa posição.
-- Dia venturoso para se viver! Soou sua voz
nítida e plácida como se fosse o vento a soprar delicadamente sobre os
elementos da natureza.
-- O que deseja. Minha voz soou mais gutural
do que eu desejava, mas firme o suficiente para deixar claro que eu não o
temia.
-- Nada tenho contra você ou seus homens. Só
desejo cruzar suas terras para fazer frente ao verdadeiro motivo de minha
jornada.
-- Meu rei não permite que usem suas terras
para agressões desonrosas.
-- Seu rei! Não é o regente desses homens?
-- Não! Sou seu filho e como tal devo dar
mostras de merecer seu amor.
-- Um rei que não comanda seus homens...
pode honrar um rei assim?
-- Ele é meu pai! Ele me confiou a defesa de
nossas terras!
-- Está certo. Não vim até aqui para
discutir seus costumes.
-- Não posso permitir que avance por nossas
terras.
-- Neste caso teremos que tentar.
-- Nossa posição é mais vantajosa.
-- Meus homens são mais bem preparados que
os seus. Percebe-se que são, quase todos, crianças.
-- Crianças! Ousa nos afrontar com sua
arrogância?
-- De modo algum, apenas tento evitar que
morram antes mesmo de conhecerem os prazeres que a vida tem a lhes oferecer.
-- Se não deseja que alguns morram, recue!
-- Não posso. A honra dos meus foi maculada
pela atitude vil daquele que vive além de suas terras.
-- Não nos foi apresentado caso semelhante.
O que sabemos é que são conquistadores ávidos por terras que não lhes
pertencem.
-- Ah, ah, ah, ah!
-- Escarnece de nós?
-- Não. Mas causa-me riso saber que dão
crédito a tão pueril versão.
-- Por que não daríamos crédito às histórias
que ouvimos sobre suas ações?
-- Acaso estou aqui para conquistar suas
terras?
A pergunta do líder inimigo me deixou sem
resposta. Na verdade ele apenas desejava que lhe permitíssemos passar por
nossas terras. Se a história que chegou até nós fosse verídica, ele não estaria
solicitando permissão para passar por nossas terras.
-- Então, jovem príncipe, o que me diz?
Meus pensamentos voaram até o salão onde meu
pai se encontrava reunidos com seus novos aliados. O lauto das reuniões
contrastava com a parca provisão que tínhamos a nossa disposição; o calor
acolhedor das paredes do castelo lembrava-me do frio que grassava nossos corpos
tornando-o ainda mais intenso; os prazeres compartilhados, embora disto eu não
sentisse falta, meus homens desejariam estar nos braços de suas amantes e
esposas desfrutando de seus corpos e satisfazendo seus apelos carnais com toda
sofreguidão.
Desviei minha atenção voltando-a para o
campo de batalha. Lentamente mirrei os semblantes indistintos daqueles que
formavam a linha de defesa, aguardando minha decisão; rostos pueris
entorpecidos pelo frio e dominados pelo inebriante apelo do repouso que lhes
faltava.
Será que eles mereciam que eu os sacrificasse
em defesa daqueles que se banqueteavam sem nem mesmo se importarem ou sequer
saberem de suas existências?
-- Não posso permitir que ultrapasse nossos
limites.
-- Então não nos resta opção, será o
confronto.
-- Mas também não me julgo detentor do
direito de sacrificar meus homens em uma batalha tão sem sentido.
-- Um impasse!
-- O que o rei sugere?
Um riso desconcertante decorou seu semblante
acompanhado por um brilho intrigante que cobriu seu olhar. Sem nada responder,
voltou-se na direção de seus homens e com a voz mais sombria que já tinha
ouvido até então, proclamou:
-- Asmodeu!
Não se passou nem um minuto e um enorme
guerreiro se apresentou diante de nós.
-- Este é meu guerreiro mais bravo.
Apresente-me o seu e eles duelaram para que possamos decidir se permite ou não
nossa passagem.
Meu coração acelerou-se com tamanha
intensidade que tive certeza de que o rei inimigo pressentira minha agitação. O
guerreiro era tão gigantesco e seu porte tão feroz que eu não me sentia em
condições de sugerir que um de meus homens pudesse enfrentá-lo.
-- Não posso oferecer um dos meus em
sacrifício.
-- Mas será a vida de um pela de dezenas.
-- Se assim for, que essa vida seja a minha.
O rei inimigo me lançou um olhar de profunda
admiração. Seus lábios se moveram num esgar silencioso, quase que como se
pronto a me saudar.
-- Um príncipe não deve digladiar-se com um
guerreiro a não ser durante a batalha. Se é sua vontade representar seus
homens, eu o enfrentarei.
-- Que assim seja.
-- Antes de começarmos, deve deixar claro
aos seus que se vencermos teremos livre passagem pelas terras de seu rei.
-- Eu os informarei.
-- Eu me curvo diante de sua honra. Mesmo
que seu rei não chegue a se comparar com sua sombra, eu aceitarei o julgamento
de nossas armas.
A ofensa lançada contra meu pai ficou sem
resposta. Recuei até onde meus homens estavam para informá-lo sobre o que
havíamos acordado. Eles ficaram aliviados ao saber que não precisariam lutar,
apenas meu capitão se opôs ao pretendido:
-- Seu pai não concordará com sua decisão.
-- Meu pai não ousará se colocar contra um
pacto de honra.
-- Ele poderá nos punir por nada fazer.
-- Se ele tentar algo semelhante, partam de
nossas terras e busquem acolhida junto ao rei inimigo; ele honrará nosso pacto
e nada fará contra vocês.
Refleti por um instante e escolhi as armas
que usaria em meu desafio. O escudo não era favorável aos movimentos, mas me
permitira suportar os ataques do inimigo. Eu não sabia nada sobre as
habilidades do adversário, mas precisava confiar nas minhas.
-- Já informei aos meus quanto aos termos de
nosso pacto.
-- Ótimo! Sendo assim, não temos mais porque
adiar a disputa.
A expectativa dominou a todos que se
posicionaram para testemunhar nosso embate. O interesse era tanto que nossos
homens quase que chegaram a formar um círculo a nossa volta. A sorte estava
lançada.
Meu primeiro ataque foi infrutífero; o rei
inimigo possuía a habilidade de um combatente experiente; seus movimentos
denotavam um apuro comum àqueles que já haviam enfrentado muitas situações
iguais; eu estava em desvantagem.
Nossas lâminas se chocavam com ferocidade
produzindo faíscas cintilantes; depois de outros dois golpes inúteis, percebi
que meu escudo era um peso a mais e lancei-o ao chão. Agora éramos apenas eu,
meu adversário e nossas espadas.
Não havia ódio em nossos corações; o olhar
sereno de meu inimigo deixava isso muito evidente; também não se notava medo em
nossos corações, apesar de saber-me em desvantagem, eu tinha coragem suficiente
para fazer frente a qualquer inimigo. O duelo era permeado pela mais nítida
honra, isto talvez tenha me desequilibrado o suficiente para que o primeiro
golpe do inimigo rompesse a grossa malha que me cobria permitindo que sua
espada osculasse meu braço esquerdo.
O sangue jorrou suavemente, o corte não
havia sido profundo.
Enquanto bailávamos estudando e preparando
nosso próximo golpe, eu fui dominado por um entorpecimento incomum; minha mente
divagava entre a realidade e as oníricas ondas de um mundo irreal; ao mesmo
tempo em que visualizava o semblante sereno de meu inimigo a me fitar, um outro
rosto surgia antepondo-se ao seu; um rosto coberto por um capuz andrajoso que
me permitia a mais apavorante das visões, um rosto descarnado e sem vida.
Novamente meu vacilo permitiu que o inimigo
me ferisse em uma parte não vital e com a mesma superficialidade do golpe
anterior. Tentei manter-me focado no combate, mas as visões se sucediam sem que
eu pudesse controlá-las. O sorriso amistoso do semblante fraterno do inimigo
dava lugar ao compacto crânio descarnado. Desejando afastar aquela visão
apavorante, desferi inúmeros golpes a esmo, um deles logrou desarmar meu
adversário.
Vendo-o desarmado, baixei minha guarda; foi
neste momento que toda metamorfose começou.
O avanço de meu inimigo foi tão fulminante
que não o vi sequer deslocar-se em minha direção. Não vou considerá-lo desleal
por ter utilizado arma tão improvável, afinal estávamos batalhando e quando
estamos defendendo nossas vidas, agimos de modo instintivo, mas confesso que
ainda me sinto surpreso com sua ação.
Enquanto ele se movia para mim, ou talvez
tenha sido quando suas presas me laceraram a carne, não estou certo, mas em um
ou outro momento as visões foram substituídas por sombras confusas, um
redemoinho intenso que inutilizou minha capacidade de raciocinar sobre o que
quer que fosse.
Assim que suas presas romperam minha
jugular, senti minha vida esvaindo-se lentamente acompanhando o fluxo de sangue
que ele sorvia avidamente. Seus olhos ainda pareciam-me serenos, seus gestos
tão dóceis que a dor era como uma ilusão distante, mas a figura horrenda do
esqueleto esbranquiçado não mais voltou; em sue lugar divisei o lindo rosto de
uma donzela esplendorosa que me fitava com o olhar envolto em um sorriso que
jamais cansei de admirar.
Minhas pernas fraquejaram e meu corpo
começou a deslizar para o chão, mas antes que a gélida superfície o alcançasse,
eu senti o beijo mais doce que um ser humano seria capaz de receber;
descerrando meus olhos pela última vez, vi aquela donzela inefável a sorver
minha alma através de minha boca; bestialmente eu a fitei e sorri.
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