segunda-feira, 16 de julho de 2012

PERSEGUIÇÃO


As ruas ainda estão escuras, mas não desertas. Apesar dos últimos ataques, a população notívaga parece indiferente a sina daquelas que pereceram sob a crueldade do famigerado que ronda as noites da cidade. Em pouco mais de uma hora a aurora despontará e, talvez, outra vítima seja contabilizada.

Uma solitária silhueta observa o movimento oculta pelas sombras que dominam a paisagem. Seus olhos estão habituados à escuridão, seus sentidos o mantém em estado de alerta, a espreita não é feita na intenção de encontrar nova fonte para extravasar uma possível animalidade, aquele que sonda o trasladar dos notívagos está a caça do causador da barbárie perpetrada nas últimas noites.

Sem desgrudar os olhos da paisagem, ele nota uma imensa sombra deslocando-se lenta e silenciosamente pelo ar. Fosse um pássaro ele não teria dúvidas de que o dia já havia despontado, mas um pássaro, qualquer que fosse, não seria tão silencioso. Desabafando sua apreensão em um bafejar ruidoso, ele se preparou para seguir o deslocamento da imensa sombra.

Conhecedor das artérias citadina, ele não precisa manter os olhos fixos pelo caminho que percorre, sua atenção está concentrada no objeto de sua perseguição. Mesmo estando compenetrado em sua tarefa, ele não consegue alienar-se das manifestações características das ruas que percorre. Seja o fedor nauseante dos dejetos humanos ou os próprios em seus andrajos esfarrapados e fétidos, ele sente o odor penetrar suas narinas numa invasão contundente.

Mas nem mesmo a pestilenta presença dos miseráveis é capaz de desviar sua concentração. Se aquela sombra o levar até o hediondo criminoso, ele não se importa em ir até o inferno. Essa sua determinação já o havia colocado em situações críticas, mas ele não dava a mínima para os riscos ou agravantes, nem mesmo para os comentários elogiosos ou depreciativos que seus colegas teciam.

Repentinamente seus olhos perdem o foco, tempo suficiente para que a sombra fuja à sua observação. Porem, antes que despejasse seu repertório de imprecações, volta a vê-la deslizando para a entrada de um edifico condenado. Aquela era uma edificação que ele esperava não ter que visitar, mas sua tarefa o estava levando diretamente para lá.

O tapume que deveria impedir a entrada de qualquer transeunte não atendia à sua função. Assim que penetrou o sinistrado prédio foi recebido pelo fedor ainda mais acre do que aquele que havia sentido no exterior. A imundice era tanta que ele precisou de muita atenção para fugir do contato com os amontoados de porcarias que se avolumavam em todos os cantos.

Centenas de farrapos humanos disputavam a primazia pelo local. As intenções de se abrigarem sob a carcaça daquela ruína eram as mais diversas possíveis, mas um elemento unia a todos: a imundice. Aquilo que poderia lhe causar nojo passava despercebido; não que ele ignorasse a realidade que o cercava, mas sua mente exilara-se apenas no trajeto que a sombra descrevia.

A escuridão que dominava o interior do edifício originaria um inconveniente que ele não conseguiria superar; a sombra se mesclaria ao ambiente impossibilitando a perseguição. Por uns segundos ele se deteve, secou o suor que lhe escorria, suspirou fundo e voltou a lançar olhares perscrutadores por todo o ambiente.

Um débil sorriso ganhou-lhe a face; a sombra não havia se mesclado à escuridão, ela tomara uma coloração argêntea, opaca, mas o suficiente para que ele pudesse retomar a perseguição.

A maldita silhueta o conduzia diretamente para a escadaria do edifício. Seu desespero aumentou ao notar que, ao invés da ascensão, a sombra buscava os recônditos do subterrâneo. Apenas uma vez ele se deixara guiar por seu instinto policial penetrando em uma câmara muito abaixo da superfície; a experiência havia sido tão negativa que ele ainda tinha pesadelos em noites que sucediam um dia muito agitado.

O primeiro passo foi o mais difícil, imaginou, mas estava enganado. O segundo quase o levou até o patamar médio da escadaria. Para não tombar logo no início ele teve que se segurar no corrimão; mesmo sabendo que era inevitável se quisesse evitar sua queda, arrependeu-se de imediato; uma gosma fedorenta aderiu aos seus dedos fazendo-o abaixar e expelir o pouco que consumira pela tarde.

No bolso nem uma mísera folha para diminuir a quantidade da substância pegajosa; sem ter a que recorrer, esfregou os dedos nas barras de sua calça na tentativa de livrar-se da gosma. Infelizmente agora ele tinha os dedos e as barras lambuzadas por aquele visco fedorento.

Aprumou-se, afinal não podia recuar. Um olhar a frente lhe indicou que a sombra ainda estava visível. Tivesse o controle de suas emoções e teria raciocinado sobre a imponderabilidade do fato. Se a sombra transitava livremente buscando refúgio nas entranhas da terra, por que haveria de deter-se aguardando que ele se restabelecesse e voltasse a segui-la? Mas sua capacidade de raciocinar tinha se evaporado, seu âmago estava tão absorvido pela perseguição que o impedia de uma visão mais geral da situação.

Os minutos se arrastaram e os lances da escadaria se sucediam sem que chegassem ao término da caminhada. Suas pernas começavam a vacilar, mesmo não tendo mais nenhuma substância a dificultar-lhe o avanço; o cansaço começava a se impor. Se desde o começo sua mente já se anuviava não lhe possibilitando um melhor raciocínio, agora ela se embotava de vez devido ao cansaço.

Foi numa virada em mais um dos contornos da escadaria que ele se viu em apuros. Seus olhos lhe mostraram, mas sua mente não estava em condições de controlar seus movimentos. O abismo surgiu como uma boca escancarada pronta para devora-lo. Não tinha como deter seus passo, ele iria se lançar no vazio sem que nada pudesse evitar o fim.

-- Ainda não! Soou uma voz roufenha às suas costas.

A pressão, que uma mão poderia impor à parte do corpo que foi segurada, não se manifestou. Estranhamente ele sentiu-se detido antes que seu corpo fosse projetado para o abismo. Ainda trêmulo, ele se voltou encontrando a estranha sombra a fitá-lo. O tremeluzir da sombra o deixou perplexo:

-- O que é você?

-- Não sou aquilo que pensa. Não sou o causador das mortes que anda investigando.

-- Mas então...

-- Seus piores pesadelos são muito mais do que pode imaginar.

-- O que sabe sobre meus pesadelos?

-- Muito mais do que supõe.

-- Eles não são da conta de ninguém!

-- Ah, mas é nesse ponto que você está enganado.

-- O que você tem a ver com eles?

-- Pergunte àqueles que padeceram por causa de sua insanidade.

-- Sobre o que está alando?

-- Permita-me mostrar-lhe os fatos.

A imensa sombra o engolfou por completo. Sua mente rodopiou com se ele tivesse sido tragado por um redemoinho invisível. O ambiente se dissipou instantaneamente, seu corpo volitou sem que ele tivesse controle sobre os movimentos convulsivos que o dominavam. A realidade perdeu-se num caleidoscópio de cenas que se alternavam vertiginosamente até que tudo se deteve ante uma escuridão aterradora.

-- Onde estamos?

-- No primeiro dia de sua insanidade.

Lentamente a escuridão deu lugar a formas difusas e sem nitidez. Silhuetas ainda indistintas vagavam aleatoriamente por espaços etéreos. Demorou um tempo até que ele conseguisse orientar-se e penetrar as cenas que se sucediam. O horror assomou-lhe o âmago e ele sentiu-se dominado por um sentimento intenso de repulsa de si mesmo.

-- Não! Eu não fiz nada disso! Eu não posso ter feito!

-- Mas fez! Soou a voz na mesma intensidade suave de sempre.

Sem acredita nas cenas que se desenrolavam ante seu aterrorizado olhar, ele se desesperou, mas o impacto ainda não havia chegado ao fim. A carnificina perpetrada de modo tão voraz o mantinha enclausurado entre a opressão incondicional de sua consciência e o brado débil de uma alegada inocência. Ele não se lembrava...

Os rostos retorcidos, deformados pela máscara mortuária que se tornava mais tétrica devido ao terror que suas donas haviam sentido antes que o último suspiro lhes escapasse por entre os filetes rubros que jorravam de suas entranhas. As carnes dilaceradas com precisão que ele jamais sonharia ser capaz de executar. Os órgãos expostos como se fossem meros repastos de um festim diabólico, mas o pior ainda não lhe chegara a parte racional da mente, assim que testemunhou sua barbárie ser completada pelo consumo de parte dos órgãos ainda tépidos, seu ser se rebelou e o contato com a sombra se desfez.

-- Você mente! Eu não fiz nada disso! Eu seria incapaz...

-- Tolo! Acredita que sua experiência nas profundezas da cidade o deixaram apenas com um monte de pesadelos vividos em noites de agitação profunda? Você recebeu muito mais do que uma carga traumática, você foi corrompido, sua alma foi conspurcada.

-- Não!

Novamente a sombra uniu-se simbioticamente à sua mente destroçada. Os pesadelos foram se diluindo e novamente ele se viu na noite quando tudo começou. Seus passos determinados o conduziam com segurança pelas ruas escuras do bairro mais afastado do centro da cidade. O bandido que estavam perseguindo havia violentado uma idosa e tentava se refugiar nas entranhas da mata que cercava o cento urbano.

Ele foi o primeiro a chegar até a entrada do buraco por onde o facínora se esgueirou. Acreditando que os outros logo o seguiriam, não pensou duas vezes para se lançar no encalço do bandido. Tivesse esperado, descobriria que não havia mais ninguém os seguindo.

A escuridão era total no interior do buraco, sua única referência era a respiração alterada e altissonante do fugitivo. Esbarrando em pontas afiadas e escorregando em pedras soltas, ele chegou até onde era possível. O imenso túnel subterrâneo se estreitou tanto que foi impossível prosseguir. Quando se virou para voltar, a pancada e a perda da consciência.

Ao despertar estava sob uma laje fria, totalmente nu com o corpo coberto por uma substância viscosa, vermelha e tépida que ele, a princípio, julgou ser alguma espécie de tinta, mas assim que lançou seu olhar em redor, horrorizou-se; o corpo de duas jovens estavam deitados ao lado do seu; cada uma delas com as partes cortadas e as cabeças espetadas em duas estacas.

Instintivamente buscou pela arma, mas voltou a inteirar-se de estar nu. Acossado pelos participantes do sangrento rito, ele se deixou conduzir até uma pequena sala onde nada havia exceto uma cadeira velha que não lhe inspirou o menor segurança quanto a sua utilização.

Sobre o assento sua arma.

Como um desvairado ele saiu correndo pelo túnel disparando sua arma a esmo. Não chegou a voltar para verificar o estrago que havia cometido, mas pelos desdobramentos que se seguiram ele soube que havia matado, se não todos, pelo menos a maioria dos presentes.

Depois vieram os pesadelos...

Um riso de escárnio preencheu o espaço vazio do ambiente. Para sua surpresa o riso não partira da sombra, ela continuava pairando fantasmagoricamente sobre o abismo.

-- Não! Não!

-- Aquilo que tinha para revelar, eu revelei.

-- O que é você, afinal?

-- Isso, agora, importa?

A pergunta ressoou enigmática pelas paredes. Mesmo sem querer acreditar em tudo que testemunhara, ele sabia que nada mais tinha qualquer importância diante das provas que lhe foram apresentadas. O famigerado, que vinha extirpando as mulheres nas ruas durante as noites, não era outro se não ele mesmo.

-- Agora pode se deixar cair.

No mesmo instante em que a sentença foi proclamada, a sombra de desfez deixando apenas o vazio em seu lugar.

Ali, naquele antro enterrado nas entranhas da terra, sem a companhia de mais ninguém além de sua acusadora consciência, ele sentiu-se o ser mais odioso do mundo. Chorou. Sem ter certeza de quanto tempo ficou encolhido a extravasar sua revolta, ele chorou até que o grito de seu algoz mais ferrenho, a intuição, o impeliu a ação.

Sem poder conviver com o peso das revelações que lhe foram apresentadas, ele suspirou profundamente, cerrou os olhos e enfrentou seu destino... o último passo, detido tão suavemente pela sombra, finalmente foi dado...

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