As ruas ainda
estão escuras, mas não desertas. Apesar dos últimos ataques, a população
notívaga parece indiferente a sina daquelas que pereceram sob a crueldade do
famigerado que ronda as noites da cidade. Em pouco mais de uma hora a aurora
despontará e, talvez, outra vítima seja contabilizada.
Uma solitária
silhueta observa o movimento oculta pelas sombras que dominam a paisagem. Seus
olhos estão habituados à escuridão, seus sentidos o mantém em estado de alerta,
a espreita não é feita na intenção de encontrar nova fonte para extravasar uma possível
animalidade, aquele que sonda o trasladar dos notívagos está a caça do causador
da barbárie perpetrada nas últimas noites.
Sem desgrudar
os olhos da paisagem, ele nota uma imensa sombra deslocando-se lenta e silenciosamente
pelo ar. Fosse um pássaro ele não teria dúvidas de que o dia já havia
despontado, mas um pássaro, qualquer que fosse, não seria tão silencioso.
Desabafando sua apreensão em um bafejar ruidoso, ele se preparou para seguir o
deslocamento da imensa sombra.
Conhecedor das
artérias citadina, ele não precisa manter os olhos fixos pelo caminho que
percorre, sua atenção está concentrada no objeto de sua perseguição. Mesmo
estando compenetrado em sua tarefa, ele não consegue alienar-se das
manifestações características das ruas que percorre. Seja o fedor nauseante dos
dejetos humanos ou os próprios em seus andrajos esfarrapados e fétidos, ele
sente o odor penetrar suas narinas numa invasão contundente.
Mas nem mesmo a
pestilenta presença dos miseráveis é capaz de desviar sua concentração. Se
aquela sombra o levar até o hediondo criminoso, ele não se importa em ir até o
inferno. Essa sua determinação já o havia colocado em situações críticas, mas
ele não dava a mínima para os riscos ou agravantes, nem mesmo para os
comentários elogiosos ou depreciativos que seus colegas teciam.
Repentinamente
seus olhos perdem o foco, tempo suficiente para que a sombra fuja à sua
observação. Porem, antes que despejasse seu repertório de imprecações, volta a
vê-la deslizando para a entrada de um edifico condenado. Aquela era uma
edificação que ele esperava não ter que visitar, mas sua tarefa o estava
levando diretamente para lá.
O tapume que
deveria impedir a entrada de qualquer transeunte não atendia à sua função.
Assim que penetrou o sinistrado prédio foi recebido pelo fedor ainda mais acre
do que aquele que havia sentido no exterior. A imundice era tanta que ele
precisou de muita atenção para fugir do contato com os amontoados de porcarias
que se avolumavam em todos os cantos.
Centenas de
farrapos humanos disputavam a primazia pelo local. As intenções de se abrigarem
sob a carcaça daquela ruína eram as mais diversas possíveis, mas um elemento
unia a todos: a imundice. Aquilo que poderia lhe causar nojo passava
despercebido; não que ele ignorasse a realidade que o cercava, mas sua mente
exilara-se apenas no trajeto que a sombra descrevia.
A escuridão que
dominava o interior do edifício originaria um inconveniente que ele não
conseguiria superar; a sombra se mesclaria ao ambiente impossibilitando a
perseguição. Por uns segundos ele se deteve, secou o suor que lhe escorria,
suspirou fundo e voltou a lançar olhares perscrutadores por todo o ambiente.
Um débil
sorriso ganhou-lhe a face; a sombra não havia se mesclado à escuridão, ela
tomara uma coloração argêntea, opaca, mas o suficiente para que ele pudesse
retomar a perseguição.
A maldita
silhueta o conduzia diretamente para a escadaria do edifício. Seu desespero
aumentou ao notar que, ao invés da ascensão, a sombra buscava os recônditos do
subterrâneo. Apenas uma vez ele se deixara guiar por seu instinto policial
penetrando em uma câmara muito abaixo da superfície; a experiência havia sido
tão negativa que ele ainda tinha pesadelos em noites que sucediam um dia muito
agitado.
O primeiro
passo foi o mais difícil, imaginou, mas estava enganado. O segundo quase o
levou até o patamar médio da escadaria. Para não tombar logo no início ele teve
que se segurar no corrimão; mesmo sabendo que era inevitável se quisesse evitar
sua queda, arrependeu-se de imediato; uma gosma fedorenta aderiu aos seus dedos
fazendo-o abaixar e expelir o pouco que consumira pela tarde.
No bolso nem
uma mísera folha para diminuir a quantidade da substância pegajosa; sem ter a
que recorrer, esfregou os dedos nas barras de sua calça na tentativa de
livrar-se da gosma. Infelizmente agora ele tinha os dedos e as barras
lambuzadas por aquele visco fedorento.
Aprumou-se,
afinal não podia recuar. Um olhar a frente lhe indicou que a sombra ainda
estava visível. Tivesse o controle de suas emoções e teria raciocinado sobre a
imponderabilidade do fato. Se a sombra transitava livremente buscando refúgio
nas entranhas da terra, por que haveria de deter-se aguardando que ele se
restabelecesse e voltasse a segui-la? Mas sua capacidade de raciocinar tinha se
evaporado, seu âmago estava tão absorvido pela perseguição que o impedia de uma
visão mais geral da situação.
Os minutos se
arrastaram e os lances da escadaria se sucediam sem que chegassem ao término da
caminhada. Suas pernas começavam a vacilar, mesmo não tendo mais nenhuma
substância a dificultar-lhe o avanço; o cansaço começava a se impor. Se desde o
começo sua mente já se anuviava não lhe possibilitando um melhor raciocínio,
agora ela se embotava de vez devido ao cansaço.
Foi numa virada
em mais um dos contornos da escadaria que ele se viu em apuros. Seus olhos lhe
mostraram, mas sua mente não estava em condições de controlar seus movimentos.
O abismo surgiu como uma boca escancarada pronta para devora-lo. Não tinha como
deter seus passo, ele iria se lançar no vazio sem que nada pudesse evitar o
fim.
-- Ainda não!
Soou uma voz roufenha às suas costas.
A pressão, que
uma mão poderia impor à parte do corpo que foi segurada, não se manifestou.
Estranhamente ele sentiu-se detido antes que seu corpo fosse projetado para o
abismo. Ainda trêmulo, ele se voltou encontrando a estranha sombra a fitá-lo. O
tremeluzir da sombra o deixou perplexo:
-- O que é
você?
-- Não sou
aquilo que pensa. Não sou o causador das mortes que anda investigando.
-- Mas então...
-- Seus piores
pesadelos são muito mais do que pode imaginar.
-- O que sabe
sobre meus pesadelos?
-- Muito mais
do que supõe.
-- Eles não são
da conta de ninguém!
-- Ah, mas é
nesse ponto que você está enganado.
-- O que você
tem a ver com eles?
-- Pergunte
àqueles que padeceram por causa de sua insanidade.
-- Sobre o que
está alando?
-- Permita-me
mostrar-lhe os fatos.
A imensa sombra
o engolfou por completo. Sua mente rodopiou com se ele tivesse sido tragado por
um redemoinho invisível. O ambiente se dissipou instantaneamente, seu corpo
volitou sem que ele tivesse controle sobre os movimentos convulsivos que o
dominavam. A realidade perdeu-se num caleidoscópio de cenas que se alternavam
vertiginosamente até que tudo se deteve ante uma escuridão aterradora.
-- Onde
estamos?
-- No primeiro
dia de sua insanidade.
Lentamente a
escuridão deu lugar a formas difusas e sem nitidez. Silhuetas ainda indistintas
vagavam aleatoriamente por espaços etéreos. Demorou um tempo até que ele
conseguisse orientar-se e penetrar as cenas que se sucediam. O horror
assomou-lhe o âmago e ele sentiu-se dominado por um sentimento intenso de
repulsa de si mesmo.
-- Não! Eu não
fiz nada disso! Eu não posso ter feito!
-- Mas fez!
Soou a voz na mesma intensidade suave de sempre.
Sem acredita
nas cenas que se desenrolavam ante seu aterrorizado olhar, ele se desesperou,
mas o impacto ainda não havia chegado ao fim. A carnificina perpetrada de modo
tão voraz o mantinha enclausurado entre a opressão incondicional de sua consciência
e o brado débil de uma alegada inocência. Ele não se lembrava...
Os rostos
retorcidos, deformados pela máscara mortuária que se tornava mais tétrica
devido ao terror que suas donas haviam sentido antes que o último suspiro lhes
escapasse por entre os filetes rubros que jorravam de suas entranhas. As carnes
dilaceradas com precisão que ele jamais sonharia ser capaz de executar. Os
órgãos expostos como se fossem meros repastos de um festim diabólico, mas o
pior ainda não lhe chegara a parte racional da mente, assim que testemunhou sua
barbárie ser completada pelo consumo de parte dos órgãos ainda tépidos, seu ser
se rebelou e o contato com a sombra se desfez.
-- Você mente!
Eu não fiz nada disso! Eu seria incapaz...
-- Tolo!
Acredita que sua experiência nas profundezas da cidade o deixaram apenas com um
monte de pesadelos vividos em noites de agitação profunda? Você recebeu muito
mais do que uma carga traumática, você foi corrompido, sua alma foi
conspurcada.
-- Não!
Novamente a
sombra uniu-se simbioticamente à sua mente destroçada. Os pesadelos foram se
diluindo e novamente ele se viu na noite quando tudo começou. Seus passos
determinados o conduziam com segurança pelas ruas escuras do bairro mais
afastado do centro da cidade. O bandido que estavam perseguindo havia
violentado uma idosa e tentava se refugiar nas entranhas da mata que cercava o
cento urbano.
Ele foi o
primeiro a chegar até a entrada do buraco por onde o facínora se esgueirou.
Acreditando que os outros logo o seguiriam, não pensou duas vezes para se
lançar no encalço do bandido. Tivesse esperado, descobriria que não havia mais
ninguém os seguindo.
A escuridão era
total no interior do buraco, sua única referência era a respiração alterada e
altissonante do fugitivo. Esbarrando em pontas afiadas e escorregando em pedras
soltas, ele chegou até onde era possível. O imenso túnel subterrâneo se
estreitou tanto que foi impossível prosseguir. Quando se virou para voltar, a
pancada e a perda da consciência.
Ao despertar
estava sob uma laje fria, totalmente nu com o corpo coberto por uma substância
viscosa, vermelha e tépida que ele, a princípio, julgou ser alguma espécie de
tinta, mas assim que lançou seu olhar em redor, horrorizou-se; o corpo de duas
jovens estavam deitados ao lado do seu; cada uma delas com as partes cortadas e
as cabeças espetadas em duas estacas.
Instintivamente
buscou pela arma, mas voltou a inteirar-se de estar nu. Acossado pelos
participantes do sangrento rito, ele se deixou conduzir até uma pequena sala
onde nada havia exceto uma cadeira velha que não lhe inspirou o menor segurança
quanto a sua utilização.
Sobre o assento
sua arma.
Como um
desvairado ele saiu correndo pelo túnel disparando sua arma a esmo. Não chegou
a voltar para verificar o estrago que havia cometido, mas pelos desdobramentos
que se seguiram ele soube que havia matado, se não todos, pelo menos a maioria
dos presentes.
Depois vieram
os pesadelos...
Um riso de
escárnio preencheu o espaço vazio do ambiente. Para sua surpresa o riso não
partira da sombra, ela continuava pairando fantasmagoricamente sobre o abismo.
-- Não! Não!
-- Aquilo que
tinha para revelar, eu revelei.
-- O que é
você, afinal?
-- Isso, agora,
importa?
A pergunta
ressoou enigmática pelas paredes. Mesmo sem querer acreditar em tudo que
testemunhara, ele sabia que nada mais tinha qualquer importância diante das
provas que lhe foram apresentadas. O famigerado, que vinha extirpando as
mulheres nas ruas durante as noites, não era outro se não ele mesmo.
-- Agora pode
se deixar cair.
No mesmo
instante em que a sentença foi proclamada, a sombra de desfez deixando apenas o
vazio em seu lugar.
Ali, naquele
antro enterrado nas entranhas da terra, sem a companhia de mais ninguém além de
sua acusadora consciência, ele sentiu-se o ser mais odioso do mundo. Chorou.
Sem ter certeza de quanto tempo ficou encolhido a extravasar sua revolta, ele
chorou até que o grito de seu algoz mais ferrenho, a intuição, o impeliu a
ação.
Sem poder
conviver com o peso das revelações que lhe foram apresentadas, ele suspirou
profundamente, cerrou os olhos e enfrentou seu destino... o último passo,
detido tão suavemente pela sombra, finalmente foi dado...
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