segunda-feira, 21 de abril de 2008

E O SINO DOBROU.


Despertando bruscamente, pareceu ver diante de si o carrilhão. Mas não ouviu os repiques festivos dos sinos. Os dobres entravam, muito distantes, em seus tímpanos entorpecidos.

Que sensação terrível! A morte se lhe apresentava tétrica, trazendo com os dobres, o cheiro nauseante das rosas, dos círios, a opressão do esquife restringindo-o por todos os lados.

Enterrado vivo!

Não pôde crer de fato que vivenciava aquilo, com todas as sensações lancinantes, a escuridão medonha, o calor insuportável, o telurismo agindo já em sua epiderme abrasada e jungida ao tecido roto do paletó.

Debateu-se, num indescritível desespero. Espavorido, arrancou as unhas, crivando-as no rosto, perfurando os olhos, dilacerando a face, arrancando os cabelos, arranhando a tampa da urna que oprimia seu tórax asfixiado sob a espessa camada de húmus..

Urrou. Berrou. Gemeu. Nunca um humano mostrara de forma tão nítida os efeitos deploráveis do suplício. E o sino ainda dobrava, longe, no carrilhão do campanário da pequena urbe.

Agora não era mais a Pisadeira. Nem os Íncubos, Súcubos, Jurupari, ou qualquer entidade ideoplasmada da Projeciologia. A catalepsia patológica o atingira com todo seu poder, na quase ausência do pulso, da suspensão da endotermia, na rigidez cadavérica. Era ainda propícia essa correção cármica em época de tão rudimentar medicina.

Tal qual Lázaro, cujo amargo desígnio fôra duas vezes descer à campa, ele experimentou todas as agruras da segunda morte, esta real, lenta, sob os requintes da asfixia, do delírio, do arrependimento por suas faltas. E como todo agonizante, recapitulou episódios pretéritos, pressentiu a presença dos desafetos, sua figura de outrora sepultando vivos nos fronts das Cruzadas, e exumando cadáveres às piras da Peste Negra.

De bruços, deu o último e estertoroso suspiro, olhos esbugalhados, língua estirada para fora, seccionada entre mandíbulas incrivelmente atravancadas.

E, no plano físico, ainda não havia pago o último centil.

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