sábado, 24 de maio de 2008

A Hospedaria do Diabo - Capítulo 3

Uma novela de Adroaldo Bauer
Acesse aqui os dois primeiros capítulos em 24 de março e 24 de abril

A intermitência da estrepitosa sirene de um carro de bombeiros acordou de supetão o Morro Carlota do Piá. Adultos e crianças correram às janelas e portões. As de colo e os bebês desataram em choro. Polvorosa era aquilo. As vielas estreitas e o barral não permitiam progresso rápido à viatura. Enfiados em improvisados abrigos contra a chuva, que iam de chambres a toalhas, passando por sacos de aniagem à moda de capotes, a multidão que se formou rápida amorteceu ainda mais a velocidade da marcha. Formou-se procissão à entrada da pequena vila onde o chamado telefônico dizia estar acontecendo o incêndio.
A sirene convocara mais que a urgência. Espicaçou a curiosidade do povo. A guarnição emperiquitada no carro parecia de santos em andor. Não faltaram sombrinhas, guarda-chuvas, até guarda-sóis de praia arremedando estandartes. O séqüito transmudou-se em fúnebre cortejo no minuto mesmo em que o alarma serenou. No cume do morro, isolada a um canto de uns matos, uma casinhola ainda ardia em poucas chamas sob um chuvisqueiro ralo, que já amainara a tormenta de há menos de meia-hora.

Valafora escolhera a perua preta com faixas brancas largas para subir Ao morro, argumentando ao parceiro que o veículo maior emprestava mais autoridade à operação que o pequeno sedan. Na embarrada curva de acesso à via principal da vila, com a redução de marcha, a perua refugou o aclive e quase desanda morro a baixo, em ré. Cheguêva grudou-se ao freio-de-mão enquanto gritava para o colega engatar a primeira marcha que acavalara a transmissão.
- Aí doutor! Essa lomba dá trabalho até pra caminhão de gás. Toca de freio puxado que ajuda.
Cheguêva não estranhou o cumprimento nem a orientação, que acabou sendo ajutório. Venceram a lomba em curva em segundos que pareceram horas de aflição, mais pela expectativa do vexame que dariam em público do que pelo risco corrido. Não estranharam a quantidade de gente acompanhando a perua à frente e nas laterais por terem já ouvido há bem dois quilômetros dali o inconfundível sinal dos bombeiros.
- Então, colega, adiante! Roda a manivela e faz soar a sirene e vê se afasta esse povo que não tá ligando pra autoridade do teu camburão.
Valafora não respondeu, mas obedeceu. Ele mesmo improvisara a sirene manual desde que a de fábrica há muito pifara sem conserto. Pegou uma extensão de fios por debaixo do painel dianteiro do carro, ligou nos contatos e rodou com volúpia quase infantil a maquineta posta para fora pela janela.
Abriram alas muito lentamente na multidão e invadiram o pequeno sítio da funesta ocorrência. A guarnição dos bombeiros encerrava já os trabalhos. Pouco pudera fazer além de recolher os corpos carbonizados de uma mulher e duas crianças para um rabecão e isolar o acesso à casinhola em escombros, as toras de madeira do telhado arriado pelo fogo ainda esfumaçando do rescaldo ajudado pela chuva.
Uma câmara de televisão perseguia o facho de um pau-de-luz por sobre a ruína calcinada recolhendo para a edição da manhã as imagens de uma boneca de plástico num carrinho de bebê.
- Que circo é esse? Que vocês pensam que tão montando? Não chega a desgraça, tem que ter crueldade? Tenho certeza que vão dizer lá no jornal que plantaram o brinquedo aí, com cobertorzinho rosa delicado e tudo e que a casa queimou toda e matou três e a boneca de plástico se salvou do tenebroso incêndio. A crueldade não tem mais limite! É tudo urubu em banquete no inferno! Arreda, arreda!
O protesto do inspetor Cheguêva era dirigido fisicamente aos jornalistas da TV. A peroração contra a farsa óbvia também justificava entre os mais próximos a encenação própria, o trovão da voz impostada, os gestos de comando, tudo há muito estudado em laboratório de dezenas de cenas iguais era destinado à alma do apinhado, que não movia milímetro de espaço para a investigação ser iniciada se não fosse tocada em profundidade.
E ao público da TV se a edição não cortasse a tomada dele.
Cheguêva arrematava como sempre naquelas circunstâncias: “quem ficar é testemunha, se tiver algum crime pode ser indiciado como suspeito, podem ir dando lugar ao trabalho da polícia”. As últimas três palavras eram sempre soletradas, pausadamente, ainda em voz alta, mas já em tom conciliador e conselheiro, dirigidas agora só ao povo presente.
Explodira um botijão de gás. A alvenaria da cozinha viera a baixo, arriando também a madeira do telhado. O fogo pegou nas treliças, nos tabiques, na mata-junta, no soalho de pinho, nos escassos móveis da peça feito fogueira junina.
- Na urgência de acudir, pulei duas valetas vindo para cá e me arranhei toda segurando no arame farpado pra não cair no lodo, repetia a quem chegasse uma vizinha de fundos da casa incendiada. Falava e erguia a mão à altura dos lábios, o gesto dando extensão às palavras. “O fogaréu era junto. Uma chama só, lambendo toda a outra peça de madeira, que era quarto e sala”, tagarelava compulsiva, reiterando o detalhe do próprio acidente com a cerca.
Aglomerado na viela ainda ladeada por duas caudalosas corredeiras resultadas do aguaceiro, o povo lamentava condoído a rapidez do sucedido sem chances ao socorro mesmo de vizinhos de lado e frente, coisa de 150 metros no máximo do lugar da tragédia.
Eram já quase três horas da madrugada, Valafora dentro da perua conversava com uma outra pessoa e teve um estalo. Despediu rápido e sem rodeios a mulher que já se debruçava na janela do veículo em prosa solta e só não correu no encalço de Cheguêva para não resvalar no lamaçal e rolar para uma das valetas da viela, agora já sem as cachoeiras antes evidentes.
- Chê! Chê!
- Calma, respira fundo e fala...
- Guardou a lata do sujeito contra o Chile?
- Que língua é essa, homem? Fala feito gente.
- Cheguêva, te deste conta que só uma pessoa desceu o morro enquanto nós vínhamos para cá e todo o resto era essa romaria aos céus? Justo o sujeito que te mandou grudar no ferro pra eu tocar fundo, lembra?
Cheguêva fingiu que não era com ele a provocação capciosa da malandragem e respondeu à altura do perguntado:
- Vamos investigar, doutor Valafora, vamos investigar...

Um comentário:

MPadilha disse...

Meu amigo Adroaldo deve achar que sou ingrata, que não li tua novela...Li sim, todos os capítulos e só não tinha comentado por pura falta de PC,rs .Eu to adorando a trama e espero que vc nos brinde sempre com um capítulo ou história nova(ou vou perder a última unha,rs).
Eu agradeço pela tua presença no Vale, vc foi uma aquisição preciosa, pelo talento e pelo caráter...Mas foi uma aquisição preciosa na minha vida mais ainda, um gde amigo.
Beijos