terça-feira, 24 de junho de 2008

A Hospedaria Do Diabo



Capítulo 4

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- Zelito, pega teu irmão e passa pra dentro, já! Sai da ventania que vai chover. Vem logo, menino!
O chamado de Carlota pelas crianças seguiu-se a avistar um céu de chumbo que se formou num repente sobre o morro onde moravam, de um jeito dos que preparam vendaval e chuvarada. Correu a recolher a roupa nos varais repletos aos fundos da casa. Aproveitara para secar montanhas de camisas, blusas, calças, lençóis e fronhas naquele mormaço fora de época que a cidade costumava enfrentar nos agostos de inverno mais rigorosos. Fora um dia de 30 graus aprontando uma noite de cinco. Enquanto retirava a roupa a passar para entrega no final do dia, ainda antes da novela da tevê, Carlota fazia mentalmente a contabilidade dos ganhos com as 13 trouxas que lavara na semana. Mais com mais, menos tanto, põe e tira... Deu-se a si mesma um sorriso satisfeito de quem poderia comprar aquele tubinho vermelho para estrear na Primavera e os novos chinelos de borracha colorida para os filhos.
As crianças dela eram dois meninos, um de 12, outro de cinco anos de idade, que ela aos 25 cuidava como poucas. Amava-as de tal modo que nem deixava ficarem sós mais de um minuto.
- Criança é azougue dona Ofelina! Descuidou, tá pregando peça na gente, fazendo traquinagem e ralando a cara no chão, comentara com a vizinha ainda pela manhã, quando estendia pacientemente, peça por peça no varal, dois prendedores de madeira em cada para esticar bem os panos e buscar melhor o vento e o sol.
- Manhê! Deixa a gente tomar banho de chuva, deixa! Pediu um esbaforido Zelito, vindo correndo da rua sem pavimento, já levantando um pó vermelho fino com o vento forte do temporal que se armava, trazendo quase de arrasto o irmão Piá, como a vizinhança apelidara o mais novo de Carlota. Piá fazia caretas e se contorcia tentando livrar-se da pegada forte da mão de Zelito. Surdo, não emitia som pelo descontentamento. Era apenas esperneio de insatisfação de estar a reboque naquelas condições de euforia do irmão.
- Banho de chuva só no pátio dos fundos, no piso de laje, sem barro. Se embarrar, vão ficar do lado de fora até eu terminar de passar a montanha, consentiu Carlota, apontando para as roupas já recolhidas empilhadas sobre a cama de casal que dividia a única peça da casa de uma cozinha minúscula em que fogão e uma mesinha redonda formavam a mobília com um armarinho suspenso sobre a cuba de uma pia sob a qual alojava-se rente à parede um botijão de gás. Além da cama, um vão em que cabiam apertadas ela e a tábua de passar e, após ela, já na outra parede, um roupeiro de duas portas e um tamborete sobre o qual instalara televisão e rádio-relógio.
Sobre o armário, todas as demais riquezas da família, um triciclo de plástico, uma mala preta grande e um enorme bicho de pelúcia que ganhara numa rifa de quermesse. Um urso branco já amarelecido pela poeira que não havia jeito de evitar entrasse em casa, quanto mais em dia como aquele de ventania. Apressou-se a estender um lençol enorme sobre as roupas recém lavadas para não empoeirarem e baldarem o serviço do dia.
A faina de Carlota foi interrompida pela música do alto-falante do caminhão de entrega do gás. Ela correu até a porta e fez o gesto de sim com o polegar da mão direita para o entregador, que alçou um botijão ao ombro e veio no rumo da casa. Ela era toda sorrisos com o moço da entrega, que já se conheciam de há muito, até intimamente, ele inclusive desconfiado de que o Piá fosse filho dele, tanto que se pareciam os olhos azuis dos dois e o cabelo loiro grosso feito palha de milho, nada similar ao de Carlota que os tinha pretos e finos, escorridos até o meio das costas, bem cuidados e limpos, quase sempre em longa trança, pelo que muita gente a chamava de cigana, Cigana do Piá.
- São meus tesouros, além das crianças, estas madeixas de madalena que mamãe sempre me fez bem cuidar, dizia prosa em resposta a quem comentasse da beleza da longa cabeleira.
- O senhor, seu moço, pode trocar o botijão para essa sua amiga que está cuidando de roupa lavada e não deseja sujar as mãos, por gentileza. Tenha certeza que sua paga será generosa e justa, provocou Carlota.
Apressado, com o motorista do caminhão já empilhado na buzina, Zuni, como era conhecido o rapaz da entrega, trocou o botijão, beijou rápido os lábios de Carlota e saiu apressado, tropeçando nos degraus e deixando escapar o botijão de gás vazio, que rolou por um declive para dentro da vala do esgoto. Apressado e aborrecido, bateu a porta do veículo e ordenou a partida. Quando retirou o botijão do lodo, o atirara e as luvas agora imundas sobre a carroçaria do transporte.
- Vamos embora, Doutor Pressa, essa foi a última entrega do dia, estamos feitos e eu cagado até os joelhos.

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