sábado, 21 de março de 2009

O BARRETE DO DEMÔNIO

A velha mansão desenhava-se imponente diante dele.

As pilastras de mármore erquiam-se em curvas sinuosas. Alpendres em estilo jônico, ladeados por caramanchões carregados de trapadeiras, folhas secas espalhadas pelas aléias do grande jardim da frente, e muitas correntes participando do conjunto arquitetônico -todo o monumento lembrava um colossal mausoléu.

Os grandes portões de aço transmitiam hostilidade em suas lanças pontiagudas.

Ao chão, um barrete. Vermelho. Estirado num perfeito triagulo isósceles. O andarilho olhou, paupérrimo, cheio de enfermidades, perseguido por pesadelos, chibatadas, pelourinhos, por credores de um pretérito traçado a sangue. Curioso, exitou uns momentos. Mas não resistiu, e tomou-o para si.

Dois redemoinhos levantaram-se por entre os plátanos do fundo do jardim, escurecido pelas grandes muralhas da mansão. Vieram, trazendo consigo poeira e folhas secas, numa coreografia sinuosa e carregada de augúrio, desfazendo-se diante das grades.

O frontispício metálico estremeceu. O ferrolho, jungido fortemente à trava do portão, deu um rangido breve, alto, seco. Acima de si, talhado em metal, um esquadro formava os três vértices de um triângulo equilátero incompleto.

Um hálito frio baforejou num sopro as mechas do transeunte. E ele sentiu o odor úmido das sepulturas.

Olhou o barrete, em suas mãos. Um tecido rústico, parecido com a sarja, trama espessa, remates enviesados, e um inconfundível odor de pele caprina.

-O barrete do demônio. - resmungou cheio de insatisfação.

Um tanto atemorizado, ia lançá-lo fora, quando, inexplicavelmente, surgiu diante de si, além das grades, um velho apoiado num bordão.

-Finalmente, encontraste o capuz do meu menino...

O velho tragava um cachimbo. Embora decrépito, mostrava ainda sob o escuro casaco algum sinal de vitalidade.





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O transeunte estendeu o barrete ao velho. Não disse palavra. Mas sentiu um calafrio quando notou os olhos penetrantes do ancião vasculharem sua alma. Não era mais um grande Senhor de Engenho. Era um mendigo.

Teve medo. Os plátanos, agora num "background", pareciam dançar num bailado macabro, enquanto o odor carregado de pele de cabra invadia novamente suas narinas.

O transeunte sumiu-se dali. Era ainda para si o tempo das persignações, da abominação das conjuras, do Mal perscrutando cada criatura, da subjugação à Bíblia, da anatematização de tudo que incutiam os teólogos "ex-professo".

O velho mergulhou no seu jardim, lento, fatigado pela idade, apoiado em seu bordão.

Um elemental saltitava inquieto buscando administrar as pequenas correntes de ar que agitavam os ramos menores das árvores. O velho sorriu com bonomia. Atirou a ele o barrete, o cachimbo. E ficou a observar aquele fluido vivo, nos primeiros ensaios do reino inferior.

E voltou à sua biblioteca, porque era Eremita. E sorriu novamente, agora um sorriso franco, lembrando-se com propriedade das atrocidades do período escravagista: negros mutilados - pernas arrancadas, mãos perfuradas.

O mundo espiritual interagia com o material. E lembrou-se de Aparecida. Diversamente do compasso, o triângulo tinha um simbolismo mais carregado de generalidade do que podiam supor.

E o mendigo mais uma vez fugira do seu resgate, inepto na compreensão de que os algozes fatalmente se vêem diante de suas vítimas.

Um comentário:

MPadilha disse...

nosso mais talentoso mago está de volta ao vale, ainda bem, ufa! adoro seus textos....