domingo, 19 de julho de 2009

O MONGE E A FEITICEIRA- Giselle Sato, Samuel Peregrino, Marcos Rezende Honório


O MUNDO É FEITO DE RETALHOS

No alto do monte Lushan, na província do Jiangxi, à margem sul do curso médio do rio Yangtsé, há um bar, ali, sobre a cidade letárgica adormecendo, Tao Yuanming, o ermitão, bebe lentamente seu Maotai imaginando ser o Grande Buda. A cidade é cercada por montes verde-oliva. Seus moradores adormecem e logo sonham.

As luzes nunca se apagam. Para cada pontinho de luz na rua, existem cinco casas, e em cada casa vivem quatro pessoas. Em uma das cinco casas, um das quatro pessoas uma está acordada e olhando o céu coberto por nuvens negras, a tempestade se anuncia em toda sua forma. Naya sente que alguma coisa muito ruim está se aproximando. Procurou Tão Yuanming para conversar sobre os maus presságios. Ele limitou-se a escutar como se fosse um enorme favor. A atitude arrogante do ermitão era esperada. Naya pertencia a mais alta casta de feiticeiras, era muito temida e respeitada. Quando jovem havia sido um dos pilares de Jiangxi apontando os locais sagrados. Ninguém entendeu quando procurou refúgio no Monastério distante famoso por rígida disciplina. Durante dez longos anos a cidade não proferiu seu nome. Era a filha exilada. A promessa perdida. Pária. Tao Yuanming não se surpreendeu ao vê-la. Naya era uma antiga amiga que, assim como todos, a abandonara há tempos para viver na montanha. Ele puxou a cadeira de bambu e numa calma silenciosa lhe estendeu o copo: - Tome, vai aquecê-la o frio.

Ela não se atreveu a encará-lo. Depois de muito tempo, a ausência dera lugar a uma indiferença respeitosa: - Porque você não voltou? - Perguntou Naya - Você sabia onde me encontrar.

De cada cinco casas ao redor da luz, de cada quatro pessoas dentro das casas, uma não está dormindo: -Eles estão despertando. Precisamos decidir. Você sabe o que fazer.

O cheiro de artemísia e sálvia encheu o ar carregado, os ventos estavam cada vez mais fortes. As janelas batiam com força e ninguém se mexia, ouviam a conversa com grande interesse. Naya sentiu o frio cortante através das roupas pesadas, a temperatura caía a cada 12 horas. Tirou um pequeno frasco do bolso e sorveu golinhos do líquido arroxeado:

- Vejo que velhos hábitos não foram esquecidos com o tempo.Lembro quando preparei seu primeiro Lamparki. - Maldito seja Yuanming. Maldito seja.

A bebida desceu com amargor, segundos depois, sua mente divagava num passado remoto. O Monge e a Feiticeira Existiam quatro torres que cercavam a cidade, cada uma marcava as principais estrelas do céu, indicando o centro magnético da terra,um lugar de energias inimagináveis, um lugar sagrado. Ligadas às torres, haviam quatro virgens, uma delas sentada ao parapeito da janela contemplava as ruas vazias, os muros desprotegidos, o mercado silencioso. Quietude que lhe aterrorizava o coração:

- Daqui posso vê-la de cima.

Naya tinha apenas cinco anos quando foi entregue as Incontestáveis. A família ficou muito agradecida e honrada. A viagem desde as terras da família ao sul foi longa e cansativa. Ao anoitecer foi apresentada a suas iguais. Quatro meninas assustadas sentaram-se a grande mesa no Mosteiro de Jiangxi. Usavam a túnica sagrada e o véu que escondia os cabelos e as formas. Rostinhos solenes assistiram a entrada da Mestra e das Incontestáveis. Levantaram-se enquanto a senhora ocupou a cabeceira, quando todas estavam acomodadas as meninas puderam contemplar a face serena e agradável das mulheres. Não exibiam qualquer emoção. Naya compreendeu que nada seria partilhado naquele lugar sem que houvesse merecimento.

Os ensinamentos seriam conquistados através do esforço de cada uma, a hierarquia e a obediência inquestionáveis. Tudo soou claramente sem que fosse necessário palavras. O silêncio seria uma constante. Naya sufocou o pranto e controlou a dor. Havia aprendido a primeira lição. Na época do solstício de verão, passando pela cidade, Yuanming procurou por uma hospedaria. Ao bater à porta de um humilde casebre... - Bom dia meu jovem. ...um ancião lhe deu abrigo.

- Pretende passar muito tempo por aqui? Yuanming lhe respondeu que pretendia ficar sete dias.

- Vejo que carrega muitos livros em seu alforje, és um poeta ou um bruxo? Disse-lhe que era um monge e buscava a perfeição nas escrituras.

- Não vai achar o que procura nos livros Yuanming, seu destino está sempre a mudar, como as nuvens. Olhe para o norte, o que vê? E apontou o dedo para a torre de pedra. - É ali que deveria começar sua busca. Os livros são apenas mapas, um caminho deve-se encontrar o tesouro, o centro de tua alma, senão, para nada serviste.

Na manhã seguinte deixou a hospedaria e foi à procura do grande templo. O grande salão estava quase lotado, em minutos começariam a série vespertina de ensinamentos, Yuanming relaxou na almofada confortável e deixou-se envolver pelas teias do saber pesquisado. O tempo passou rápido demais e mal se deu conta que havia assimilado vários ensinamentos. Precisava aprender sobre muitos lugares sagrados antes poder retornar a seu lar.

As portas da Grande Biblioteca do Templo sempre estavam abertas e nenhum ensinamento era negado. Depois de muito aprender e meditar sentiu sua mente se elevar do corpo, sua áurea começou a vagar a esmo pela cidade. Era noite do solstício de verão, a época privilegiada da grande passagem anual da terra em torno do astro rei, onde as energias se acumulavam e sem perceber se viu na Torre de Pedra do Norte. A magia do lugar era forte, podia sentir a força das Incontestáveis e uma energia muito sutil. Uma menina olhava Yaunming com altivez, era tão pequena e arrogante que não conseguiu conter o riso. Olhos frios, escuros e cortantes. Verdes como as águas dos oceanos mais profundos.

Sentiu um forte puxão e no instante seguinte o impacto da incorporação, havia perdido a concentração e estava de volta ao corpo físico. Levou alguns segundos para recuperar totalmente os sentidos e forças. Uma menina ou uma forma pensamento? Talvez uma ilusão para impedir sua entrada na torre. Talvez. Nenhum homem podia entrar nas torres que guardavam a cidade. Os guardiões selaram as quatro portas com poderosas runas, nenhum mortal ousaria transpô-las. Sim, um poderoso encantamento guarda aquele lugar, pensou Yuanming enquanto repousava seu corpo, estendido, imóvel sobre o chão desenhado; um círculo dentro de uma estrela dentro de um quadrado dentro de um sol. Ao retornar a seu quarto, Naya buscou dentro de si alguma lembrança daquele espectro que vira entrando em sua Torre. A visão lhe era familiar, será um presságio de maus agouros? Será um sinal de que chegara o tempo? Vivera seus dezessete anos esperando por um risco no céu, um sonho revelador, uma visão nas entranhas de um animal, uma nuvem que fosse. Com os sentidos abalados, a áurea vulnerável, Naya temeu por não se sentir pronta, seu devaneio fora interrompido pelo badalar da última hora, o amanhecer anunciava a próxima sessão.

CONDUZIR-SE POR UM FEIXE DE LUZ

No dia seguinte ao solstício, saindo da hospedaria Yuanming é inquirido pelo ancião. - Você conhece a garota?

- Que garota? - Desvencilhou-se Yuanming. - Vi os desenhos em teu quarto, ao que pretende, esses encantamentos para nada lhe servirá. Não se pode mover uma Incontestável de seu lugar, somente por um breve momento, quando os planetas estiverem alinhados.

- Pode me ensinar?

- Não se pode aprender a Grande Arte.

- Mas se pode pagar por ela?

- Porque estaria à venda?

- Talvez porque não tenha filhos, pela Lei posso ser seu discípulo.

- Sábia resposta Yuanming. Suba ao Monte Tezrha em jejum. Espere-me em silêncio até ouvir o ressoar dos sinos na última hora do dia.

O vento frio soprava um lamento que fazia o coração mais duro sentir um arrepia de horror. O mais cético dos homens questionaria suas crenças quando a noite descia no Monte Tezrha. Um local árido e devastado, lobos vagavam em busca de caça, serpentes venenosas e escorpiões eram os únicos habitantes.

Em uma das cinco casas, uma das quatro pessoas está acordada olhando o céu tão negro quanto a alma daqueles que temem o Julgamento. Naya estava sendo submetida ao último ajuste nos implantes que haviam sido colocados ao longo da coluna. Todos os chakras estavam desobstruídos, a consciência plena alcançada, a experiência havia sido um sucesso. Nem todas suportaram. Ainda podia ouvir os gritos da pequena Anya implorando que a deixassem partir. Muito mais tarde compreendeu que a menina suplicava o alívio da morte:

-Não ouse deixar o corpo agora, estamos quase terminando.

-Dor. Tanta dor, porque me torturam desta forma?

-Ela não pode perder a consciência, não deixem que ela nos deixe agora.

Deitada na imensa mesa de ônix as costas descobertas sob a pedra fria exibiam um emaranhado de fios de luz habilmente manipulados pela Mestra. A abertura dos vórtices modificaram vários centros energéticos e causavam grande sofrimento. A moça agora era um ser único. Todos os segredos e códigos viviam naquele corpo, a magia e a as Torres eram parte de Naya. A terra vibrava em cada célula e era como se ela pudesse ser todas as consciências daquele lugar sagrado.

Yuanming sentiu uma angústia crescente e por um segundo sentiu a dor da jovem. O ancião bateu com força o bastão na terra vermelha:

- Concentre toda energia, está quase conseguindo. Esqueça a bruxa.

O monge sentiu as primeiras lágrimas embotarem os sentidos. Naya estava morrendo e de alguma forma isto era mais importante que qualquer lição. Ele sentia a cada momento os sentidos se desvanecerem se envolvendo com aquela vida que definhava. Ambos perdidos numa concentração de sentidos, os pensamentos se fundiam, não conseguia distinguir mais que parte era Yuanming que parte era Naya. E ambas as entidades cada vez mais desligadas de seus corpos descobriam uma nova realidade, uma nova dimensão onde a vida corpórea não representava mais que um estágio passado da vida e onde o futuro caminhava por uma estrada dourada rumo ao infinito.

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