segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O ANTAGONISTA

A queda do misericordioso foi um acontecimento tão brutal que gerou ondas de energias destruidoras. Todos os auxiliares ficaram sabendo sobre o fato. Muitos se surpreenderam com a atitude daquele que deveria ter sido o supra-sumo da falange.
Mas teve um que não acompanhou seus pares. A inveja brotou violenta em seu íntimo. Ele nunca teria a primazia nos desdobramentos da missão. Há tempos que vinha urdindo uma trama nefanda. Elaborara uma maneira de ter alguns dos auxiliares sob seu comando. Tudo dependeria do quanto eles estivessem dispostos a abandonar as diretrizes originais.
Em sua revolta ele amaldiçoou seu oponente. Por que ele tinha sempre que ser o primeiro? De que valeram seus esforços em elaborar um plano ousado se outro o tinha executado? Por que tinha esperando tanto tempo para agir? Ah, sim, ele temia as conseqüências de seu ato.
Não fosse por seu temor em ser amaldiçoado e expulso da falange, teria agido sem nem pensar. Mas seu oponente não temeu pela maldição que o atingiria. Nem mesmo se deu ao trabalho de ocultar seu gesto. Todo o cosmo sentiu o impacto de sua queda.
Uma compensação ele tinha; agora que seu oponente não pertencia mais à falange, ele podia ser combatido de igual para igual. Mas para isto, ele também teria que sucumbir ao apelo que abatera seu igual.
Secretamente, ele separou uma das jovens que viviam sob sua condução. Não sentia nenhum desejo diferente por ela, mas sabia que só assim atingiria o mesmo plano ocupado por seu oponente. Que este plano fosse inferior àquele que ocupava, não importava; que este plano pertencesse às trevas, ele não dava a mínima.
Seu desabar foi ainda pior do que aquele que atingiu o primeiro. Não estando dominado por desejo algum, ele não podia ocultar-se sob manto algum. Suas intenções moldavam a nova conformação que teria após o ato. Toda sua beleza seria consumida pela deformação; sua aura sedutora desapareceria sob a máscara da morte; seu âmago seria dominado pela frieza dos que abandonam o Amor.
A hora escolhida chegou. Mantendo a jovem em um estado latente, ele a observou por todos os ângulos. Ainda em tempo de impedir seu descalabro, ele considerou a possibilidade de não executar seu plano. Que interesse levou seu oponente a agir como fizera? Esses seres não possuiam atrativo algum, ao menos para ele.
Talvez a atração estivesse relacionada ao corpo... Com um sorriso sarcástico em seus lábios, ele a despiu. Os humanos deveriam usar o corpo para perpetuar sua espécie. As relações usariam as energias oriundas de planos superiores... sim! De repente tudo ficou claro.
Ele se apossaria de energias muito mais potentes do que aquelas que podia manipular. Com toda certeza foi por isso que seu oponente deixou-se seduzir pela pureza da jovem que sacrificou. Ela sabia que as energias, direcionadas aos humanos, eram mais poderosas.
Despindo de sua condição de anjo, ele aproximou-se do corpo inanimado da jovem esperando sentir algo diferente. Nada! Ele não compreendia o que estava fazendo de errado. Por que seu maldito oponente conseguira e ele não se sentia capaz de ir em frente?
Não estivesse possuído por sua sanha ilusória de se tornar o primeiro em algo, ele teria compreendido que sua incapacidade nascia da proteção que cingia todos os auxiliares. Quebrar esta proteção o tornaria tão frágil quanto os seres que deveria proteger.
Refletindo sobre o fato passado além de seu domínio, ele concluiu que não tinha como sentir nada estando no plano destinado aos auxiliares. Se quisesse efetivar seu desejo teria que descer até o plano material. Somente na matéria ele poderia sentir o apelo mais forte originado pela energia sexual.
O local escolhido ficava em um paradisíaco vale temperado. As flores preenchiam o ar com seus aromas suaves; as águas vertiam de fontes cristalinas; os animais vagavam despreocupados pela campina; os seres humanos mantinham-se atentos a toda lição que lhes era destinada.
Sob a sombra de uma imensa árvore, ele a deitou ainda desfalecida. Fitou-a por longo tempo até que seus olhos se cansaram. Irado, ele levantou pragas aos céus. Por que não sentia nada por aquela infeliz? Por que seu oponente tivera êxito quando ele não fazia idéia de como agir?
Enfurecido, ele a tomou em seus braços de modo desajeitado. Apertou-a contra as narinas, mas nada sentiu. Tocou seu corpo inteiro e ainda assim não despertou nenhum desejo interior. Sua zanga crescia descontroladamente.
Mentalmente reviu a forma como os seres humanos tinham que proceder para a perpetuação de sua espécie. Entendeu o ato como estando aquém de sua condição de anjo, mas se essa fosse a maneira para ele conquistar seu objetivo, que assim fosse.
Selvagemente ele possuiu o desfalecido corpo. Com brutalidade ele conspurcou a inocência adormecida. Ensandecido, ele ultrajou a pureza de um dos seres que deveria proteger. Seu desatino foi ainda pior do que aquele praticado por seu oponente.
Terminado o ato, ele sentiu-se vazio. Ao invés do poder que imaginara, um vazio gigantesco começou a se avolumar em seu âmago. As energias superiores não estavam envolvendo seu ser, pelo contrário, pareciam estar abandonando-o.
Passada a sensação de vazio, ele foi acometido por intensas dores. Seu corpo se contorcia em espasmos violentos. Feridas horrendas surgiam sobre a superfície de seu corpo. Seus olhos inchavam, sua tez tornava-se plúmbea, seu hálito se condensava em um vapor fétido e corrosivo. A metamorfose começara.
A aura protetora se desfez de imediato. Todas as radiações passaram a atingi-lo com violência. Não fosse sua perspicácia, teria sucumbido antes à pressão esmagadora das manifestações astrais. Como se fosse um ladrão flagrado em pleno ato, ele fugiu para o seio das trevas.
A dimensão das sombras estava vazia. Seus sentidos demoraram a adaptarem-se. Quando conseguiu inteirar-se das nuances que dominavam o ambiente, o desespero; a solidão, que o abraçou, mostrou-lhe o quão equivocado estava. Não havia séqüito, não havia poder, não havia... nada!
Cego pelo ódio, ele vagou a esmo. Seus passos claudicantes o levavam para além das silhuetas amorfas, porém não eram capazes de libertá-lo das sombras. A escuridão o prendia em seu manto originando uma sensação de sufoco descomunal.
Inconformado, ele não se abria às correntezas energéticas que perpassavam a dimensão. Sua mente só era capaz de fixar-se em um objetivo, precisava encontrar seu inimigo e destruí-lo. Como faria para encontrá-lo?
O objetivo de sua andança não podia ser encontrado ali. Mesmo tendo se lançado ao abismo da perdição, o “inferno” não tem um único plano. Suas faltas não era equivalentes e, portanto não podiam padecer num mesmo ambiente ou sofrer a mesma punição. Cada desatino produz seu próprio “purgatório”.
O tempo avançava sem considerar seu inconformismo. Séculos? Milênios? Quanto tempo ele estava vagando por aquela escuridão sem fim? Mesmo sendo, ou já tendo sido, um anjo, seu corpo ressentia da falta de alimento. Não os mesmo que sustentavam os humanos, mas da energia restauradora que mantinha a Vida pulsando em todos os seres viventes.
Olhos ressecados, garganta ardendo, peito arfante, membros doridos, ele se aproximava da exaustão. Seu exaurir seria silencioso e solitário. Sua queda não lhe trouxe nenhum benefício, ao contrário, só servira para destruí-lo.
Mas então, um fato modificou tudo. Um rogo egoísta retumbou na abóbada que servia de teto à dimensão em que se encontrava. Alguém, um humano, exigia compensação por sua dedicação. O tolo não compreendia que a recompensa era sua própria Vida.
Atraído pelo rogo, ele abandonou a dimensão das trevas. Deslizou mansamente ao encontro do incauto arrogante. Não estava no controle do deslocamento, mas isso não o incomodava. Ele havia se libertado da escuridão.
Ao encontrar-se com o conjurador, tentou manifestar seu desejo de atender ao rogo do egoísta, mas não foi capaz. Sua voz desaparecera, seu semblante não era percebido pela visão do humano. Ele ainda não estava preparado para atuar na matéria.
Desta vez ele não se desesperou. Lembrou-se do dom com que fora dotado, ele podia comunicar-se através de suas ondas mentais. Sorriu zombeteiro e iniciou o contato com o homúnculo.
Sob sua orientação, o desprezível obteve a hegemonia sobre aqueles que compartilhavam de sua existência. Sequioso pelo poder, ele tiranizou os seus exigindo que o tratassem por rei. Sem importar-se com o ônus que impunha, ele levou os seus à beira de um precipício. A deflagração da guerra foi sua maior afronta.
Enquanto seu servo seguia suas orientações, o anjo caído exercitava suas habilidades para poder atuar diretamente junto aos homens. Em sua tentativa, ele se deparou com o quadro mais repugnante que poderia se apresentar; a beira de um lago de águas plácidas, ele se viu refletido na superfície cristalina.
Um urro apavorante fendeu o ar. O som foi tão potente que reverberou para além dos domínios de seu servo. Esta foi a primeira vez que os humanos ouviram um som proferido por suas entranhas. Todos que o ouviram foram tomados pelo pavor.
O semblante maravilhoso e suave que ele portava havia sido substituído por uma mascara disforme e grotesca. Os olhos não passavam de fendas desproporcionais e sem vida, as orelhas se tornaram avantajadas e pontudas, os dedos alongados e delgados, as pernas e os braços não tinham mais a proporcionalidade comum à criatura resplandecente que fora, a boca se tornara uma abertura desprovida de lábios ou contorno que tivesse alguma conformidade harmônica, o nariz crescera e se cobrira de verrugas purulentas, a pele perdeu seu brilho argênteo e ganhou um aspecto escamoso e sulforoso. Aquela criatura deformada não podia ser ele.
O descontrole voltou a dominá-lo. A fúria bloqueou sua capacidade de superar sua condição maldita. Novamente se deixou levar pelo ódio aquele que o precedera. O odioso inimigo não perdera sua aparência angelical. Mesmo tendo sido o primeiro a cair, ele ainda era tão maravilhoso quanto antes.
Por que ele teve que receber toda carga do castigo? Ainda não conseguia proferir uma palavra audível aos humanos e, agora, mesmo que conseguisse, eles fugiriam de sua aparência monstruosa. Como poderia reinar sobre os humanos se não pudesse atraí-los de alguma forma?
A arma das armas se apresentou como sendo uma dádiva coberta pelo visco da podridão. Assim que sua mente se apoderou do controle das sensações, ele tomou ciência da maneira como poderia submeter o ser humano, o riso sarcástico que se desprendeu de suas entranhas foi o segundo som, que ele conseguiu emitir, que foi percebido pelos homens. A mentira seria sua arma infalível.
Convencer, a mente humana, de que ele ainda era tão maravilhoso quanto antes não foi nada difícil. Manipular os sentidos para que seu grunhido gutural fosse recebido como sendo a manifestação maviosa de um anjo, também foi fácil. Estabelecer um objetivo para que o homem se rendesse a sua influencia foi um pouco mais trabalhoso, mas ele também conseguiu dobrar o espírito humano.
Seu único receio era quanto à reação dos outros auxiliares; aqueles que não haviam se rendido ao apelo da sedução. Como eles iriam reagir quando os homens começassem a agir de modo contrário a suas orientações?
Mas, neste ponto, ele teve a total cumplicidade da humanidade. Os auxiliares foram sendo preteridos pelas constantes instigações que ele realizava. Antes mesmo do que ele acreditava, os homens haviam se colocado sob seu poder. A humanidade se rendeu às trevas.
Ainda preso ao peso de seu erro, o anjo da misericórdia recebeu todo o peso da carga que a humanidade gerou com sua escolha. Ainda dominado por sua dor, ele não era capaz de combater seu antagonista. A derrota que ele viveu ainda não tinha produzido todos os frutos. Sua seara ainda seria muito mais maldita e amarga.

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