domingo, 14 de novembro de 2010

A SOMBRA DO VAMPIRO II

Meu último encontro trouxe lembranças que se encontravam adormecidas. Fatos tão antigos que acreditava estarem mortos. Excluído de meu mundo, deslocado no mundo dos homens, alienado em meio ao caos que rege a realidade hodierna.
As vibrações plangentes do passado me lançam em um turbilhão de emoções que afastam minha razão contribuindo para o delírio. As sombras não representam a única prisão que me mantém distante de meu mundo. As trevas não podem ser tidas como meu pior carcereiro. Um sentimento interior muito mais pujante que as energias nefastas, emanadas pelo inferno, serve como grilhão a impedir meu vôo.
O conhecimento de minha origem abate-me o ânimo. Estou condenado a vagar sem descanso ou direito à misericórdia. Um anjo destituído de sua condição celestial. Uma besta apocalíptica mantida incógnita num mundo tosco.
Os infelizes, abortados pela sorte, que se tornam minhas vítimas podem demonstrar todo pavor originado por minha atuação. Mas a grande maioria, que cruza meu caminho, não faz a menor idéia de quem sou. Para eles não passo de um qualquer. Estão tão descrentes que não são capazes de registrar as energias que fluem de meu ser. São meros espectros vegetando na matéria. Ainda que implore pela libertação de meu castigo, sinto compaixão e nojo por esta raça ignorante e arrogante. Os poucos que despertam minha compaixão afastam-se de mim com asco. Eles sabem quem sou e me desprezam por isso. Rumino minha desgraça enquanto aguardo. O frio afasta as pessoas das ruas, mas sempre tem aquele que se arrisca pela noite.
Hora de avançar. O odor do sangue ganha minhas narinas, mais um infeliz irá se encontrar com aquela que me nega seu beijo. Sinto suas vibrações despreocupadas. Ele está embriagado e relaxado. Seus pensamentos ainda guardam as últimas imagens. O colo caliente da mundana que o saciou ainda se delineia em sua mente. Seu riso sarcástico mostra o quanto a despreza. Já que tenho que cumprir minha sina, que seja com alguém destituído de nobreza. Assim minha consciência não incomodará tanto.
A ação é tão rápida que não chega a ser uma caçada. Espreitando-o das sombras, abato-o assim que ele se mostra ao meu alcance. Seu sangue é quente, mas não tem o mesmo sabor daquele que corre nas veias de um inocente. Conheço o efeito desta diferença. Mesmo desejando um buquê mais precioso, jurei que jamais voltaria a atacar um inocente. Uma vez havia sido o bastante para mim.
A única inocente, que se tornou minha vítima, causou-me a maior de minhas angústias. A dor de sua tragédia fulminou-me instantaneamente. Morri quando violei minha condição de anjo. Morri quando a pequena vida findou em meus braços. Seu sangue não me trouxe o saciar. Ainda tenho seu fantasma a me seguir nas noites solitárias. Seu sorriso inocente é um juiz cruel que me condena a todo instante.
Resignado, cumpro o papel que me cabe. Mais um desgraçado deixou este mundo caótico. Minha sede foi aplacada, jamais será saciada. Ainda sinto a revolta em ebulição em meu âmago. O doce sabor do precioso líquido se torna amargo. A morte chega por minhas mãos, ou melhor, minhas presas, mas não se digna a ferir-me com seu forcado. Exaurido sem esperança de repousar minha infame carne, ainda pergunto-me por que me é negado o fim?
A noite traz-me a certeza de que mais um desgraçado encontrará o descanso que me é negado. Agonizo antes de mais um ataque. Sem ter como evitar a desgraça iminente, lanço-me num caminhar mecânico. As sombras me engolem, sou seu vômito mais ácido. Os transeuntes deslocam-se sem se darem conta do quão mortal é este que passa ao lado. Se soubessem quem sou...
Deixo-me conduzir por um aroma suave proveniente de um nicho ainda desconhecido. Seja quem for, sei que o repasto será auspicioso. Carros velozes cortam as ruas ainda tomadas pelo frenesi da metrópole. O final de semana é um deleite para os humanos. Aproximo-me de uma praça. O odor fétido, característico do local, não atinge minhas narinas. Elas estão dominadas pelo doce perfume.
Entre tantas vibrações, consigo identificar aquela que me atraiu até aqui. A pele clara contrasta com a veste escura. Os olhos cintilam a dor. Recebo seus pensamentos com amargura. Uma jovem linda, plena de vigor, desejando o mesmo fim que tanto anseio. Apesar do odor adocicado, já não tenho certeza de que seu precioso líquido me traga conforto. Suicidas não são um bom “prato”.
Repentinamente ela se vira em minha direção. Suas energias se uniram as minhas e ela pressentiu quem sou. Como se estivesse esperando por mim, ela sorri. Sei o que ela deseja, mas não tenho mais vontade de sugar sua seiva. Viro-me para uma retirada incondicional. Ela brada tentando chamar minha atenção. Recuso-me a atender seu chamado.
Ela saiu correndo em minha direção. Está determinada a se entregar ao meu abraço. Sinto seu coração pulsar acelerado. Poderia ter volitado e desaparecido no ar, mas algo me deteve. Agora sinto o toque de sua delicada mão em meu braço. O apelo silencioso, estampado em seu olhar, me atinge como uma adaga em brasas. A atitude confiante me desarma.
Seguro-a com carinho. Trago seus lábios até os meus envolvendo-nos em um momento mágico. Por um segundo não me sinto um monstro. O gesto, que para muitos representa o começo de uma noite promissora, representou o fim de uma dança que terminaria em tragédia. A pouca essência de redentor que ainda me resta penetra em seu âmago e ela já não sente mais o desejo de morrer. Olha-me outra vez. Seus olhos brilham diferentes. Uma réstia de esperança despertou em seu íntimo. Agradecida ela se afasta. O doce aroma, que me atraiu, volta a se manifestar. A sede queima minha garganta.
Um urro. Um salto no escuro. Um vôo incerto. Tudo tão rápido. Quando me dou conta da realidade já é tarde demais. Outro corpo jaz sobre o solo imundo. Como um louco ensandecido deixo me dominar por uma gargalhada demente. Embora dominado pela angústia de me ver revelado pelo reflexo do luar, ao menos não é o corpo daquela bela jovem que tenho a meus pés.
Fosse quem fosse, o infeliz que jaz sem vida é um dos muitos desgraçados que a sorte deserdou. Um ninguém num mundo caótico. Ao menos lhe aliviei o fardo que a vida lhe impusera. Ele não tem mais que se preocupar com as dores que o mundo lhe causava. Quisera poder fazer o mesmo com o fardo que me soterra a cada instante de minha desgraçada existência. Mas sei que não sou merecedor.
O fogo dos lábios da moça ainda arde nos meus. Tanto tempo sem sentir a suavidade de um carinho. Acreditava não fosse mais capaz. Esta noite meu vagar tem outro propósito. A sede que devora minhas entranhas é nada comparada a esta nova ansiedade. Sei que não posso esperar uma retribuição, um partilhar de minhas emoções, mas reencontrá-la já me deixará... feliz? Será que posso esperar que tenha a ventura de sentir o toque da felicidade? Eu, um ser abominável e maldito!
Percorro lugares onde acredito que ela possa estar, mas não a sinto. Suas energias se dissiparam com o dia. Sinto-me perdido. Um vazio imensurável consome minhas forças. Acredito que minha punição ainda possa ser intensificada. Muitos olhares, muitos rostos, muitos corpos, mas nenhum que seja aquele que procuro. A noite me tem prisioneiro da solidão.
Minha ronda avança pela madrugada. Os primeiros vestígios da aurora já se fazem notar. Onde estará aquela por quem procuro? Nada! Uma noite inútil! A cripta que acolhe meu corpo parece mais gélida depois de minha fracassada procura.
No exercício de minha ilusão, olvidei a sede que consome minha alma. A falta de alimento não chega a me incomodar. Uma premência mais pungente se manifesta. Atender a essa nova carência é meu novo desafio. Tenho que insistir. Enquanto procuro pelo repouso material, minha alma sofre os açoites de sua maldição. A carne dorme, mas a mente ainda atua.
Um ser maldito, origem dos pesadelos mais apavorantes, tendo que enfrentar seu próprio pesadelo. A ausência de sentido. Olhos serenos me fitam na escuridão. O arfar sôfrego chama minha atenção. O mesmo perfume de antes... estou delirando. De repente tudo se modifica. Da escuridão opressora não é a delicada moça que se projeta. Um espectro vil se apresenta. Seu escárnio é total. Ele ri de minha credulidade ingênua. Tripudia sobre minha ilusão de querer ser amado.
As vergastadas rompem minha carne. Sou um andrajo sem direito a compaixão. Os golpes me fustigam. Estou à deriva. O sangue verte dos canais que se abrem em meu corpo. Meus olhos cerram-se na tentativa de anular os efeitos do castigo. Por quê? Por que não posso sentir o alento de um sentimento que redime até o mais vil dos demônios? Por que esta condenação brutal?
Antes que eu desfaleça, meu algoz cessa seus golpes. Eu já recebi a lição que precisava. As marcas recentes me manterão recluso. Elas servirão para me mostrar quem sou. Ao senti-las, terei a exata medida do quão desprezível é minha existência. Elas irão me manter afastado das benesses que apenas os benditos podem haurir. Sem ter como reagir, irei me ocultar nas sombras.
Nada mais será uma mera continuidade. O fogo arde mantendo o desejo vivo. O aroma entranhou-se em minhas narinas. O rosto delicado não abandona minha mente. Onde andará a miragem que domina meus pensamentos?

Um comentário:

Cadinho RoCo disse...

Uma vez contaminado pelo amor fica difícil escapar do sonho proposto pelo querer.
Cadinho RoCo