O ambiente era
o que se pode chamar de não recomendável. Os dois homens seguiam entre
transeuntes suspeitos e desconfiados. Enquanto o mais velho parecia estar
caminhando entre amigos, o mais novo dava sinais de estar sendo acossado por
demônios zombeteiros que o conduziam para a boca do próprio inferno.
As ruas
encontravam-se entupidas de prostitutas mal vestidas, malandros cheirando a uma
mistura de perfume barato e álcool, punguistas e outras tantas personagens que
só encontravam acolhida no seio sorumbático dos becos e ruelas dominadas por
uma asfixiante névoa originada de chaminés que não descasavam jamais.
-- Tem certeza
de que estamos agindo certo? Perguntou o amedrontado jovem.
-- Não somos
servos do Senhor? Onde mais podemos encontrar almas necessitando de salvação?
-- Mas esse
antro é tão perigoso.
-- Ainda tem
muito que aprender meu jovem noviço.
O incipiente
diálogo foi interrompido pela visão do destino que buscavam. A entrada da
taverna era ainda mais repelente do que o caminho percorrido, mas o velho homem
não dava importância a nenhum dos detalhes que compunham a miserável paisagem.
Sua mente tinha um único propósito e quanto antes ele cumprisse sua tarefa,
melhor.
-- Padre!
Gritou um homem robusto e repleto de sinais tortuosos em seu corpo. Veio tentar
converter mais alguma alma perdida?
-- O de sempre,
Arnaldo.
Sem dar maior
atenção ao barman, o padre tomou lugar numa das mesas mais afastadas do local.
A presença de seu aprendiz era um ônus que ele desejava não ter que carregar,
mas não havendo opção...
-- Peregrinando
pelo purgatório?
-- Tenho
assuntos a tratar por aqui.
-- Mais almas
que clamam por misericórdia?
-- Esta noite
não. Preciso falar com o gerente.
-- Ah, o
gerente...
-- Você me
conhece, sabe que eu não pediria um encontro com ele caso não fosse
extremamente necessário.
-- Espere aqui
enquanto vou ver o que consigo.
A presença
habitual do padre serviu para que a normalidade do local seguisse seu curso,
nem mesmo a companhia de um novato despertou o interesse dos demais
freqüentadores. Por meia hora eles tiveram que esperar.
-- O gerente
vai recebê-lo, agora.
-- Obrigado.
-- Apenas o
senhor.
-- Certo. Pode
cuidar de meu amigo enquanto eu vou ter com o gerente?
-- Tudo bem.
Algum tratamento especial?
-- Não, apenas
fique de olho nele.
Lentamente o
padre atravessou o imenso salão que abrigava a taverna. Sem que nenhum outro
presente se importasse com seu caminhar, ele chegou até a porta que conduzia ao
interior da parte reservada. Um profundo suspiro escapou-lhe ao transpor a
barreira; não era a primeira vez que se encontrava com o gerente, mas sempre
que era necessário tal encontro, sentia seu peito premer, muito mais agora que
o motivo o deixava mais incomodado.
-- Entre,
salvador dos pecadores. A voz gutural de seu interlocutor não lhe causava mais
o desconforto das primeiras vezes, mas mesmo assim ele sentia algo de sinistro
toda vez que eles se falavam.
-- Desculpe-me
pela quebra de sua rotina, mas o assunto é urgente.
-- Vai querer
salvar minha alma?
-- Embora mesmo
você seja merecedor de misericórdia, não é este o motivo de minha presença
aqui.
-- Certo, em
que posso lhe ajudar?
-- Preciso
encontrar um vampiro.
-- O que... o
gerente mantinha-se entretido com algumas raspas de fumo, ao ouvir o pedido do
padre ele teve que cuspir o conteúdo de sua boca. Certos assuntos devem ser
tratados com mais diplomacia.
-- Sinto muito,
mas não tenho tempo para circunlóquios sem sentido.
-- Não está
querendo virar um caçador desses miseráveis, está?
-- Não. É certo
que a existência desses seres nos causa indignação, mas o motivo de minha procura é outro.
-- Bem,
considerando seu status e a instituição a qual representa, devo salientar que
será bem difícil atender sua solicitação.
-- Mesmo assim
devo insistir.
-- Verei o que
posso fazer.
-- Por favor, o
caso é urgente.
Assim como
haviam chegado, o padre e seu acompanhante partiram. Sem poder compartilhar sua
carga com ninguém, ele se martirizava por não poder resolver tudo a seu modo. A
palavra empenhada sempre foi uma questão de honra, o que não dizer em se
tratando da pessoa envolvida? Ele iria esperar até a noite seguinte, caso não
tivesse resposta, partiria para o local onde imaginava que os vampiros
habitavam.
Único conforto
em meio a tempestade que vivia, o jardim interno do imenso mosteiro mantinha-o
entretido durante a tarde. O sol castigava, mas ele não se importava, sua
atenção estava concentrada em atender às necessidades das pequenas plantas. A
concentração só foi quebrada quando uma sombra interpôs-se entre ele e o sol.
-- Poderia
afastar-se um pouco. Solicitou imaginando tratar-se de algum dos irmãos que
viera até o jardim.
-- Estou
precisando me confessar.
-- O horário
das confissões está fixado na entrada do mosteiro.
-- O senhor
desejará ouvir minha confissão.
A presença de
um estranho nas dependências do mosteiro já seria um fato inusitado,
considerando a hora em que se encontrava e a insistência do mesmo em querer ser
ouvido em confissão levaram o padre a abandonar sua tarefa e mirar o semblante
juvenil do estranho.
-- Uma
confissão?
-- Um certo
gerente me garantiu que o senhor é um dos melhores neste mister.
-- Venha, creio
que posso abrir uma exceção.
Em silêncio
ambos caminharam em direção à pequena capela existente na extremidade do
jardim. O suor escorria pelo rosto do padre, mas não era causado pelo sol
escaldante, uma vez que seu corpo era atingido por espasmos enquanto o frio o
dominava.
-- Temos que
ter cuidado.
-- Não se
preocupe, posso pressentir a chegada de qualquer um que se aproxime.
-- Muito bem.
Vamos ao confessionário.
Posições
assumidas, o padre executou os paramentos habituais, descerrou a portinhola que
lhe concedia vislumbrar a silhueta do estranho.
-- Intrigante.
Foi o comentário lacônico do homem.
--
Constrangedor, para mim.
-- Se é, por
que me procurou?
-- Um amigo
solicitou minha intervenção em uma caso de extrema urgência e gravidade.
-- Poderia ter
declinado da solicitação.
-- Não, não
neste caso.
-- Muito bem,
que assunto tão importante é esse?
-- Conhece o
príncipe Del Fochio?
-- Aquele
verme!
-- Sua filha
foi acometida por um mal letal.
-- A pequena
princesa do Lácio?
-- Eu tentei
enfiar em sua cabeça dura que não seria recomendável a sugestão que ele havia
me feito, mas ele está cego.
-- Fosse pai,
compreenderia seu amigo.
-- Não sou pai,
mas posso compreendê-lo. Mesmo não concordando com sua opção.
-- Então o
abominável príncipe está oferecendo sua doce filha em sacrifício!
-- Caso aceite,
seja delicado com ela.
-- Eu a conheço
muito bem. Não que seja uma mulher a qual eu procuraria para satisfazer meus
desejos mais pecaminosos, mas ela é um encanto.
-- Quanto ao
pagamento por seus préstimos...
-- Pagamento!
-- Sim. O
príncipe me autorizou a oferecer-lhe uma trégua em suas ações.
-- Nós nunca
selaremos a paz com aquela aberração!
-- Mas ele está...
-- Deixe que eu
trato diretamente com ele o preço a ser cobrado.
-- Quer dizer
que aceita?
-- Não perderia
esta oportunidade por nada deste ou de qualquer outro mundo.
Enquanto o
padre entregava-se a penitente oração, o jovem vampiro exultava em seu vôo até
o reduto que compartilhava com os outros iguais. Em seu âmago vibrava uma
energia até então desconhecida. O maldito que os caçava implacavelmente
solicitara auxílio; não um auxílio qualquer, mas ele estava disposto a entregar
a filha para aqueles a quem ele desprezava.
O sorriso que
estava estampado em seu semblante despertou a curiosidade dos outros, mas ele
não permitiu questionamentos. Foi até os aposentos que ocupava, esmerou-se na
preparação de seu visual e voltou a deixar o reduto dos vampiros.
A situação no
palácio do príncipe era desoladora. A mãe permanecia estática ao lado do leito
da filha, o príncipe havia se refugiado em sua biblioteca entregando-se ao
ilusório conforto da bebida.
-- Vermelho
como o nosso, mas a este falta a docilidade do buquê que apenas o sangue
possui.
A manifestação
inesperada fez o príncipe revirar-se sobre a cadeira; estivesse sóbrio, ele
teria sofrido um tombo ruidoso, mas em seu estado o máximo que ocorreu foi um
deslizar quase bizarro.
-- Você!
Vociferou ao identificar o interlocutor.
-- Sem
agressividade, afinal você solicitou meus préstimos.
-- De todos os
vermes da Terra, por que tinha que ser você?
-- Destino.
-- Não fosse a
dor que me consome, eu mesmo o mandaria para o inferno.
-- Se minha
presença é tão odiosa, vamos concluir nossos negócios rapidamente.
-- Certo.
Acompanhe-me.
A vingança é um
cálice que se deve sorver lentamente.
O sorriso
sarcástico do jovem vampiro contrastava com a silhueta dorida do príncipe.
Fosse outro a estar dependendo de seu auxílio, o jovem não estaria se portando
de modo tão cruel, mas aquele homem havia praticado as mais brutais ações
contra os seres das trevas.
-- Por favor,
espere um pouco. Minha esposa não foi informada sobre o acordo.
Por ele, o
jovem vampiro, esperaria toda eternidade, mas a filha do príncipe não tinha
tanto tempo assim. Após alguns minutos onde as alterações das vozes chegavam
indistintas aos seus ouvidos, ele contemplou a mulher sair tresloucada do
quarto enquanto o príncipe o convidava à alcova.
-- Faça!
-- Sabe que a
perderá de uma maneira ou de outra.
-- Não importa.
Melhor saber que a perdemos mantendo-a neste mundo do que sabendo que ela se
foi.
-- Ela não
poderá conviver com vocês.
-- Eu sei.
-- E quanto a
sua selvageria sem limites? Continuará a nos caçar como se fossemos verdadeiros
demônios?
-- Não.
Enquanto eu viver vocês estarão livres para ir e vir em minhas terras.
-- Perfeito.
Sem dar maior atenção ao príncipe, o jovem preparou-se para a consumação do
ato.
-- Ainda não
acertamos os detalhes do pagamento.
-- Pagamento? O
que mais poderia ofertar de tão valioso em troca de uma missão tão saborosa?
Novamente o
escárnio. O arrogante príncipe foi obrigado a engolir sua fúria e assistir
enquanto seu odioso inimigo lhe tirava seu bem mais valioso.
Em sua tarefa
permeada de prazer e dor, o jovem vampiro não se apercebeu da manobra infame do
príncipe. Ainda deitado sobre o corpo inerte da moça, ele sentiu quando a lança
o atingiu no peito.
-- Maldito!
Acreditou mesmo que eu entregaria minha filha à escória?
Nem um único
movimento de reação foi observado. Como se a lança nem estivesse atravessada em
seu corpo, o jovem concluiu sua ação e somente então voltou sua atenção ao
príncipe.
-- Eu deveria
esperar atitude vil de sua pessoa, mas tenho como reparar minha distração.
Ao perceber que
o jovem retirava, tranquilamente, a lança de seu corpo, o príncipe recuou
assustado. O iminente golpe que ceifaria sua vida o fez alienar-se de tudo o
mais. Para surpresa ainda maior, o jovem pareceu voltar a ignorá-lo. Ao retirar
toda lança do corpo, atirou-a a um canto, debruçou-se sobre a enferma tomando-a
em seus braços.
-- O que vai
fazer?
-- Eu poderia
por fim a sua infame existência, mas isto seria lhe conceder o benefício do
esquecimento.
-- O que
pretende?
-- Toda vez que
se lançar em uma caçada contra os meus, irá se perguntar: “será que minha filha
está entre aqueles que estou perseguindo”?
-- Não!
-- Adeus,
príncipe!
Assim que a
sombra volátil do vampiro se desfez, o príncipe recuperou sua capacidade de
raciocinar, mas então era tarde demais para qualquer reação. Apesar de toda sua
prepotência, o inimigo levara a melhor, ele havia perdido a filha e ao retornar
para seu quarto ficaria ainda mais estarrecido; inconformada com a solução
encontrada pelo esposo, a princesa colocara um fim a sua existência.
2 comentários:
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